Em artigo publicado no site República.org, dedicado à otimização do setor público brasileiro, Alex Cavalcante Alves, fundador do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE), apontou: os servidores públicos não são super heróis, mas humanos passíveis de erros. Para o autor, a profissionalização da área exige remuneração digna, capacitação continuada e elevados padrões de integridade. Confira a íntegra:
SERVIDORES PÚBLICOS TAMBÉM ERRAM: UM DEBATE SOBRE DIREITO ADMINISTRATIVO
Basta adentrar um pouco o mundo do Direito Administrativo para constatar que se fala relativamente pouco do principal responsável por aplicá-lo no dia a dia: o servidor público. Por muito tempo, os trabalhadores da esfera pública eram idealizados por estudiosos da área – muitos deles sem prática em gestão pública – como seres dotados de uma conduta irrepreensível e doses extraordinárias de habilidade e abnegação. No entanto, descobriu-se que o servidor público não é um super-herói, embora muitas vezes, de fato, tenha atitudes de grande heroísmo no exercício de suas funções, e que a profissionalização da área exige remuneração digna, capacitação continuada e elevados padrões de integridade.
Assim, por melhor qualificado que seja e por maior que seja o espírito público que detenha, o servidor público é um ser humano e, como tal, detentor de virtudes e defeitos, e passível de erro. Essa percepção se choca com a imagem desenhada pelo Direito Administrativo ao longo do tempo, em que o servidor aparece como um ente imune às falhas. O entendimento de que servidor não erra também traz outra questão: a ideia de que suas falhas deveriam resultar em punições das mais severas.
Prova disso é que a Lei 8.112/1990, o regime jurídico dos servidores públicos, não menciona instrumentos de gestão aplicáveis nem a mediação como possíveis soluções de conflitos internos à força de trabalho no setor público: a lei passa diretamente ao dever de representar e à responsabilização. Outro exemplo é que o direito de arrependimento do ingresso em novo cargo público, denominado juridicamente de recondução, apesar de previsto desde a Constituição de 1934, enfrentou posições doutrinárias das mais duras com os servidores desde então. Elas, por sua vez, alimentaram posições administrativas igualmente duras, levando servidores a buscar no Poder Judiciário o seu direito de retornar ao cargo público anteriormente ocupado1.
Nos grandes congressos e eventos sobre Direito Administrativo, o maior destaque é para as contratações públicas, que dominam a pauta das programações. Fala-se sobre a Nova Lei de Licitações e Contratos, as interpretações possíveis das cláusulas contratuais, os acórdãos de Tribunais de Contas sobre o tema e uma infinidade de detalhes sobre cada dispositivo que rege o tema.
Muito pouco tempo se reserva, entretanto, aos aspectos de pessoal, carreira e motivação, e sobre como a própria legislação afeta o servidor público, o mesmo que irá aplicar diariamente essa legislação tão complexa. Quando o assunto “servidor público” entra na pauta desses eventos, o principal mote costuma ser justamente a responsabilização. A impressão que se passa é a de que o servidor nasce, estuda, ingressa no serviço público, realiza licitações, gerencia os contratos decorrentes, é responsabilizado, punido, e passa o restante dos dias buscando se defender e mitigar os danos à sua reputação.
Servir ao público vai muito além desses – importantes, frise-se – temas. Entender de contratações públicas e de direitos e deveres de agentes públicos é essencial, mas contratos não estão acima de pessoas, e as pessoas precisam ter um ambiente seguro para aprender, exercer o seu trabalho e, ao longo desse exercício, algumas vezes, mesmo tendo aplicado seus melhores conhecimentos e esforços em busca de um resultado positivo para a Administração Pública, errar. Precisam ter formação numa série de tópicos, inclusive sobre a efetividade e a busca de resultados que impactem positivamente a vida dos cidadãos, sobre qualidade do atendimento, métodos de gestão, formas de fazer mais e melhor, conduta ética, integridade. E, por que não, sobre como procederem quando perceberem que erraram.
Felizmente, o cenário vem mudando. A Controladoria-Geral da União, numa louvável medida, instituiu formas alternativas de responsabilização de servidores públicos por meio da Instrução Normativa 2/2017 e normativos que a sucederam, trazendo a possibilidade de celebração de Termos de Ajustamento de Conduta. O Tribunal de Contas da União, por sua vez, criou uma secretaria específica para tratar de procedimentos alternativos de solução de controvérsias em temas sob análise da Corte envolvendo a Administração Pública e particulares, a SecexConsenso.
Tivemos importantes alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e na Lei de Improbidade Administrativa visando dar mais segurança jurídica para atuação de boa-fé dos agentes públicos. Quem sabe uma eventual alteração da Lei 8.112/1990 não positive mecanismos de gestão para a pacificação de conflitos internos e uma ótica mais humana para a gestão de pessoas no setor público? Além da própria lei, os decretos que disciplinam a atuação do Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal também precisam ser modernizados. Afinal, o mundo está cada vez mais atento à importância das pessoas, e o Direito Administrativo brasileiro não pode deixar de acompanhar essa evolução.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Sobre o tema, ver, também do autor, o artigo: O direito de desistência de cargo público como fundamento para a recondução dos servidores públicos. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura (Thomson Reuters/Revista dos Tribunais), v. 3, p. 89-102, 2019; e o livro A Recondução do Servidor Público: Doutrina e Jurisprudência à luz da Lei 8.112/1990 e da Constituição Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2021.
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