Fábio Medina Osório, para o Migalhas: “Centenário do professor Eduardo García de Enterría, um guardião da democracia espanhola”

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Nesta quinta-feira (27/4), completaria cem anos de idade, se estivesse entre nós, o Professor e Catedrático espanhol Eduardo García de Enterría, o maior dos administrativistas de sua geração, meu orientador de doutorado e, sobretudo, grande amigo e referência. Nascido na pequena Ramales de la Victoria, na Cantábria, bem ao norte da Espanha, García de Enterría foi, como pontuei quase dez anos atrás, por ocasião de seu falecimento, precursor de uma nova mentalidade no Direito Administrativo contemporâneo, com enorme influência na Europa e na América Latina.

Figura basilar no processo de redemocratização espanhola, após décadas de ditadura franquista, ele foi fundamental para a performance de seu discípulo, o constituinte espanhol Lorenzo Martin Retortillo Baquer, responsável pela inscrição do princípio constitucional da interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos na Constituição Espanhola de 1978. García de Enterría foi, acima de tudo, um corajoso democrata, nascido e formado em tempos de Guerra Civil e de desmonte das liberdades civis e políticas na Espanha. Com a contundência de quem, desde a década de 1950, confrontava a arbitrariedade dos Poderes Públicos em sua produção doutrinária, foi artífice da construção da democracia ainda no combate às arbitrariedades administrativas da ditadura franquista. Não por acaso, graduou-se na Universidade de Barcelona, centro histórico da resistência democrática à ditadura.

Em sua carreira de pós-graduação, migrou para a Universidade de Madri, e se estabeleceu naquela cidade, com períodos de estudos no Reino Unido (Londres) e na Alemanha (Tübingen). Por um período de cinco anos, foi catedrático de Direito Administrativo da Universidade de Valladolid (1957-1962), retornando a Madri para assumir a mesma cátedra na Universidade Complutense de Madri, onde nos conhecemos muitos anos depois, em 1998, ocasião em que ele assumiu minha orientação no doutorado naquela Universidade, a pedido do saudoso Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, após muitos anos sem orientar nenhum outro discípulo.  Foi na Complutense em que García de Enterría obteve prodigiosa ascensão, tornando-se catedrático ainda antes dos 40 anos de idade. Em 1970, García de Enterría assumiu a direção do Departamento de Direito Administrativo da Universidade Complutense de Madri.

Foi autor de numerosas obras jurídicas, com destaque para seu célebre Curso de Derecho Administrativo, cuja primeira edição surgiu no início da década de 1970, em coautoria com o Catedrático e querido amigo Tomás Ramón Fernández, um clássico do Direito Administrativo contemporâneo. Toda sua obra teve e tem enorme impacto na Europa e na América Latina. Destaque-se o seu célebre artigo, ainda da década de 1950, “La interdiccion de la arbitrariedad en la potestad reglamentaria”, publicado em 1959, em plena Era Franquista, no 30º número da Revista de Administración Pública, tradicionalíssimo periódico da academia espanhola, onde tive a oportunidade de publicar artigo com o novo conceito de sanção administrativa no Direito brasileiro, em 1999, graças à generosidade do Professor García de Enterría. As sanções administrativas aplicadas na ditadura franquista eram extremamente arbitrárias e foram combatidas por García de Enterría em seu célebre trabalho doutrinário. A partir daquela reflexão deu-se início uma série de trabalhos que culminaram na confecção do princípio de interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos,  consoante a atuação de Retortillo-Baquer na Constituinte espanhola, na Carta de 1978.

De nosso convívio pessoal, guardo inesquecíveis recordações, e profícuo diálogo no pensar jurídico. Traduzi para o português sua última obra, “Las transformaciones de la jurisdicción administrativa: de excepción singular a la plenitud jurisdiccional. ¿Un cambio de paradigma?”, de 2007, aqui lançado pela Editora Fórum. Um enorme presente que Enterría me deu foi prefaciar minha obra “Teoria da Improbidade Administrativa”, naquele mesmo ano de 2007, obra que relançamos em edições revistas e atualizadas rotineiramente.

E não posso deixar de recordar a inestimável contribuição do catedrático espanhol para a formulação e início das atividades do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE), do qual foi presidente de honra e principal homenageado de nosso seminário de estréia, que já conta vinte anos, denominado “O Novo Direito do Estado”. Naquela ocasião, García de Enterría veio ao Brasil e recebeu o doutorado honoris causa pela UFRGS das mãos da então reitora Wrana Maria Panizzi, ocasião em que palestraram no evento os juristas Gilmar Mendes e Luis Roberto Barroso, entre outros juristas.

Na concepção do IIEDE, García de Enterría foi decisivo com seu prestígio para a reunião de inúmeros Catedráticos espanhóis. Desse esforço colhemos frutos até até os dias de hoje, como demonstramos em anos recentes, de pandemia, com eventos como “Seminário Internacional de Direito Administrativo em Homenagem ao Catedrático Tomás Ramón Fernández”, promovido em 2021 com farta participação de administrativistas ali reunidos para homenagear Ramón Fernández, mas também entrelaçados pelo apreço ao legado de García de Enterría.

Além da profusão de contribuições que permeou nossa amizade e relacionamento, ressalto, para finalizar, a convivência com o homem, com o amigo e confidente que ele foi, muitas vezes em sua Escola de Catedráticos, onde nos reuníamos uma vez ao ano, em alguma cidade da Espanha. Nesses encontros, havia rituais para celebração dos novos Catedráticos espanhóis, almoços, jantares e caminhadas, além de debates e diálogos sobre grandes temas do Direito Administrativo contemporâneo. García de Enterría faria, em 27 de abril, data de aniversário do meu pai José Silveira Osório, também seu aniversário, seu centenário, e seu legado é inestimável para o Direito Administrativo contemporâneo.

Fábio Medina Osório
Presidente executivo do IIEDE, advogado do escritório Medina Osório Advogados e ex ministro da AGU.

 

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