Com o amadurecimento da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei nº 12.846/2013), assiste-se recentemente à pulverização dos processos administrativos de responsabilização (PAR), instaurados para apurar a prática de atos legalmente tipificados como lesivos à Administração Pública e, ao final, impor à pessoa jurídica responsável as sanções administrativas cabíveis.
Novidade no Direito brasileiro, o iter procedimental do PAR tem suscitado dúvidas constantes, dando azo a equívocos por parte dos profissionais que com ele lidam. Temos constatado, por meio da prática cotidiana do escritório, a necessidade de discutir com mais profundidade esse processo específico, já que a inexperiência de alguns atores envolvidos pode levar à violação de direitos constitucionais fundamentais e à defesa inadequada das empresas acusadas.
Neste artigo, queremos chamar a atenção para o desprezo, logo no início do processo, às garantias do contraditório e da ampla defesa, situação que temos testemunhado recorrentemente na defesa de pessoas jurídicas sob investigação.
Com efeito, o PAR representa uma das mais atuais manifestações do Direito Administrativo sancionador, o qual reclama a observância de uma hermenêutica própria, axiologicamente aproximada daquela que prevalece no Direito Penal, já que ambos compartilham os limites impostos pelo que se tem chamado de “Direito punitivo”.
Um desses limites é exaustivamente debatido na persecução penal, pois se revela como pressuposto da própria legitimidade do exercício do poder punitivo. Trata-se da exigência do devido processo legal, cuja concretização depende do respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa. No âmbito do PAR, porém, como temos visto na prática, as repercussões desse limite carecem de discussões mais aprofundadas, contribuição que pretendemos com este artigo.
O contraditório e a ampla defesa são corolários do princípio do devido processo legal e geram, como consequência prática, o direito a todo e qualquer acusado, seja pessoa física ou jurídica, de responder a uma acusação explícita e bem delineada realizada em seu desfavor, utilizando, para tanto, todos os meios de defesa admitidos em direito. É por isso que, no processo penal, a descrição deficiente da imputação acarreta a inépcia da denúncia, porque não permite ao acusado exercer de forma adequada seu direito ao contraditório e à ampla defesa, já que simplesmente não sabe com exatidão do que se defender — e nem deve pressupô-lo.
O mesmo raciocínio, por força da aludida atmosfera hermenêutica do Direito Administrativo sancionador, deve vigorar nos processos administrativos instaurados para responsabilizar pessoas jurídicas e aplicar-lhes sanções previstas na Lei Anticorrupção Empresarial. O STF já decidiu, por exemplo, que “nenhuma penalidade poderá ser imposta, mesmo no campo do direito administrativo, sem que se ofereça ao imputado a possibilidade de se defender previamente. A preterição do direito de defesa torna írrito e nulo o ato punitivo. Nemo inauditus damnari debet. O direito constitucional à ampla (e prévia) defesa, sob o domínio da Constituição de 1988 (artigo 5º, LV), tem como precípuo destinatário o acusado, qualquer acusado, ainda que em sede meramente administrativa. O STF, ao proclamar a imprescindibilidade da observância desse postulado, essencial e inerente ao due process of law, tem advertido que o exercício do direito de defesa há de ser assegurado, previamente, em todos aqueles procedimentos — notadamente os de caráter administrativo-disciplinar — em que seja possível a imposição de medida de índole punitiva (…). A ordem normativa consubstanciada na Constituição brasileira é hostil a punições administrativas, imponíveis em caráter sumário ou não, que não tenham sido precedidas da possibilidade de se exercer, em plenitude, o direito de defesa. A exigência de observância do devido processo legal destina-se a garantir a pessoa contra a ação arbitrária do Estado, colocando-a sob a imediata proteção da Constituição e das leis da República (…)” (ADI nº 2.120, rel. min. Celso de Mello, j. 16/10/2008, DJE de 30/10/2014).
A questão parece encontrar adequado tratamento na esfera do Poder Executivo federal. Isso porque o assunto veio disciplinado na Instrução Normativa nº 13, de 8/8/2019, da Controladoria-Geral da União, que prevê, em seu artigo 16, a denominada “nota de indiciação”, que deve ser lavrada com a instauração do PAR, contendo, no mínimo, “a descrição clara e objetiva do ato lesivo imputado à pessoa jurídica, com a descrição das circunstâncias relevantes”, “o apontamento das provas que sustentam o entendimento da comissão pela ocorrência do ato lesivo imputado” e “o enquadramento legal do ato lesivo imputado à pessoa jurídica processada”.
Em termos trocados, a nota de indiciação representaria, no PAR, o papel exercido pela denúncia no processo penal: permite ao particular saber os fatos que compõem a acusação, os elementos indiciários que a subsidiam (justa causa) e a que tipo legal ela se adequa. Trata-se, portanto, de função da maior relevância, pois somente com essas informações se poderá falar em efetiva possibilidade de exercício do contraditório e da ampla defesa.
Não se pode olvidar, nessa esteira, que a nova Lei de Abuso de Autoridade tipifica, em seu artigo 30, a conduta de dar início ou proceder à persecução administrativa sem justa causa fundamentada, o que corrobora a imprescindibilidade de uma demonstração coesa dos fatos imputados e dos elementos de cognição que respaldam a instauração do processo.
O problema surge, contudo, nos processos instaurados perante outros entes e poderes. Como a necessidade de lavrar-se a nota de indiciação não está expressa na Lei Anticorrupção Empresarial, apesar de também dela implicitamente decorrer, temos visto, com frequência, a instauração de PARs sem a presença desse indispensável elemento que deveria instruí-lo, ou de outro que faça as suas vezes.
Nessa perspectiva, em geral, as normas locais que regulamentam a aplicação da Lei Anticorrupção em seus âmbitos de competência, além de omissas sobre a nota de indiciação, trazem dispositivos cuja leitura açodada acabaria legitimando uma interpretação dissonante do espírito hermenêutico que rege o “Direito punitivo”.
Podemos citar, a título de exemplo, o Decreto Estadual nº 46.366/2018, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe, em seu artigo 11, inciso III, que a instauração do PAR ocorre mediante portaria a ser publicada no Diário Oficial, na qual deverá constar “o número do processo administrativo onde estão narrados os fatos a serem apurados“.
A aplicação literal do dispositivo acima transcrito, entretanto, não satisfaz os requisitos mínimos para permitir a materialização dos direitos ao contraditório e à ampla defesa. Mesmo que se preveja, no artigo 15 do decreto, que na notificação à pessoa jurídica conste “a síntese dos fatos a serem apurados”, a falta de um instrumento próprio para a demarcação precisa da imputação, transferindo ao particular o ônus de “concluir” do que é acusado, subverte a lógica do processo sancionador.
Não é razoável, portanto, que os fatos objeto de apuração não estejam taxativamente delimitados, sendo ônus do acusador apontar quais são e que ato lesivo configuram, bem como fundamentar a instauração do processo, sob pena de configuração do crime de abuso de autoridade mencionado.
E nem se diga que o parágrafo único do artigo 11 do decreto seria suficiente para assegurar o contraditório e a ampla defesa, ao exigir o aditamento do ato de instauração para a apuração de “fatos não mencionados nos autos quando da publicação da portaria”. Isso porque o dispositivo, na verdade, apenas reforçaria a aparente prescindibilidade da determinação efetiva dos atos lesivos a serem investigados no PAR, já que permitiria a apuração de quaisquer fatos porventura “mencionados nos autos”, independentemente da síntese realizada na notificação.
Disso decorre a necessidade, que temos sustentado nos casos que nos chegam, de uma leitura harmônica e que parece ser a mais apropriada sob a ótica do processo sancionador em um Estado de direito Democrático: na eventual omissão das normas regulamentares locais, deve-se prezar pela aplicação analógica da Instrução Normativa nº 13/2019 da Controladoria-Geral da União, procedendo-se, de qualquer modo, à lavratura da nota de indiciação após a instauração do PAR, com todos os elementos que a compõem.
Afinal, como leciona Fabio Medina Osório, em sua clássica obra acerca do tema, as garantias e direitos constitucionais fundamentais “comportam uma série de outras garantias e direitos, como desdobramentos necessários, infelizmente desprezados na esmagadora maioria das legislações administrativas, bem assim na jurisprudência dominante, ainda tímida e demasiado distante das necessidades de um sistema punitivo revigorado” (Osório, Fábio Medina. “Direito Administrativo Sancionador”. Quinta ed. São Paulo: RT, 2015, pp. 440/441).
Assim, para que os direitos ao contraditório e à ampla defesa não sejam relegados a um papel coadjuvante, para não dizer inexistente, no bojo do processo administrativo de responsabilização, é urgente a adequação dos respectivos procedimentos às regras basilares do “Direito punitivo”. A definição precisa da acusação e a demonstração da justa causa devem ter protagonismo no início do PAR, papel que é bem desempenhado pela nota de indiciação, cuja adoção, pelos entes acusadores que ainda não o fizeram, é salutar.
Marcelo Zenkner é sócio na área de Direito Administrativo e Projetos Governamentais do escritório TozziniFreire Advogados, doutor em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa, ex-promotor de Justiça, ex-diretor de Governança e Conformidade da Petrobras e ex-secretário de Controle e Transparência do Espírito Santo.
Gabriel Ene Garcia é advogado na área de Direito Administrativo e Projetos Governamentais em TozziniFreire Advogados e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 10 de setembro de 2021, 7h15