O fenômeno da globalização trouxe, dentre seus múltiplos efeitos, uma aproximação crescente dos sistemas jurídicos existentes. Inúmeras correntes do pensamento jurídico e filosófico tentam explicar a teoria do Direito, a jurisprudência, as normas, seus fundamentos, existência e validade, ao longo dos séculos, percorrendo culturas distintas. Variadas vertentes suscitam abordagens discrepantes a respeito do próprio conceito de Direito, de justiça, de regras, princípios e normas. No entanto, na essência, o que se tem é que o Direito vem adquirindo certos contornos globais em sua normatividade, com ampla repercussão da atuação dos juristas (jurisprudência), mas sem descurar da notável aparição do sistema legislado, o qual invade os modelos common law. E quais seriam essas características centrais?
Os juristas buscam, nos sistemas normativos, aplicar regras abstratas formuladas por Poderes independentes, no caso o Poder Legislativo, mas também o próprio Poder Executivo. Chamamos de juristas, aqui, um conjunto de operadores do Direito encarregados de distribuir justiça aos casos concretos, sejam eles juízes, sejam integrantes de outras instituições incumbidas igualmente dessa tarefa de entrega da justiça material, através da aplicação das regras gerais aos casos concretos. É dizer, advogados, membros do Ministério Público, autoridades administrativas também podem estar encarregadas de distribuir justiça no desempenho de suas atribuições. Outra nota essencial desses tempos é que os juristas devem se ater aos chamados precedentes, na medida em que buscam aplicar regras gerais a casos concretos, seguindo decisões anteriormente tomadas para situações semelhantes, dentro do que se convencionou designar como precedente judicial ou administrativo. Tal exigência é imperativo lógico do princípio da segurança jurídica e da isonomia. O indicativo do precedente já não é um postulado apenas da cultura anlgo-saxã, mas exigência universal que se alastra como imanente ao devido processo legal. Ao mesmo tempo, a obediência a regras gerais e abstratas permeia o tecido normativo de culturas do direito da common law.
Essa unificação de padrões de culturas diametralmente opostas, vale dizer, paradigmas da common law e da civil law, é uma tendência que se alastra pelo mundo. Os sistemas apresentam disfunções e problemas similares, nesse contexto. Juristas extremamente ativos costumam atuar com imenso protagonismo na leitura das regras abstratas e na formulação de suas hipóteses de interpretação, em todos os modelos. Emerge, assim, um problema comum a todos os sistemas, qual seja, o do controle da discricionariedade hermenêutica dos juristas em face do poder decisório, e a manutenção da racionalidade e o caráter isonômico e justo de cada sistema. D’outro lado, também há um debate crescente sobre a qualidade das regras confeccionadas pelos Poderes incumbidos da produção in abstracto, o que remete à crise de representatividade popular e legitimidade democrática. No fundo, a preocupação é com a qualidade progressiva desses sistemas, o que envolve tanto as regras gerais quanto a jurisprudência judicial ou administrativa, incluindo os acordos. Nesse sentido, pode-se dizer que há uma busca por qualidade nos sistemas globais, em maior ou menor grau. E a crise que há, em muitos sistemas, é uma crise de eficiência, de gestão, e de qualidade.
Muitos não enxergam, seja nas leis, seja na jurisprudência, o necessário parâmetro de justiça material que deveria nortear a solução dos reais problemas de uma sociedade, eis o que gera a crise de legitimidade das democracias contemporânea. Há dois pilares de corrosão dessa justiça material: a corrupção e a ineficiência. Tais patologias conduzem ao arbítrio e a inúmeras iniquidades. Princípio comum aos processos civilizatórios, já dizia Eduardo García de Enterría, é o da interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos, que é imanente ao devido processo legal substantivo. O aprimoramento das instituições passa, pois, pela qualidade dos atores responsáveis pela produção normativa e pelo processo decisório nos regimes democráticos.
Consequência de um ambiente mais qualificado é a exigência de maior responsabilidade de todos os agentes públicos por seus atos. Os agentes políticos possuem deveres de prestação de contas, transparência, submissão ao crivo de órgãos de controle interno e externo, bem assim estão sujeitos ao controle rigoroso da opinião pública. O fortalecimento desses espaços de controles recíprocos é característica central dos modelos normativos globais. O reino da impunidade tem sido cada vez menor no mundo contemporâneo. Amplificam-se prerrogativas da sociedade em detrimento de interesses puramente individuais. A supremacia do interesse público sobre o particular tem sido a tônica nas relações jurídicas. Proliferam espaços públicos não estatais. Para lidar com esses novos desafios, mais do que nunca, é necessário preparo intelectual e sólida formação ética.
Fábio Medina Osório, ex Ministro da AGU, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, advogado.