Os novos espaços de diálogo entre o poder público e as pessoas, sejam físicas ou jurídicas, impressionam pela elasticidade, temporalidade, formalidade e transversalidade das disciplinas jurídicas. Antes, o fenômeno era restrito a determinadas áreas do Direito privado, e sempre debaixo de restrições; mas agora se alastrou ao Direito público de modo indiscriminado, inclusive ao Direito penal e ao tributário (vide portaria 360 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de 13 de junho de 2018, que trata de acordos em matéria tributária).
As novas tecnologias irromperam nos domínios do Direito e criaram suas próprias leis, gerando uma lógica peculiar de velocidade e soluções, à luz dos paradigmas da inteligência artificial. Imaginar que as antigas premissas que permeavam os conflitos poderiam presidir as relações interpessoais seria uma ilusão nos tempos complexos que vivemos. Os processos disruptivos são permanentes e também as inovações não disruptivas abrem caminhos surpreendentes.
Não se trata apenas de reconhecer as relações digitais como imperiosas, e logo os serviços públicos digitais, a administração pública digital, e as soluções consensuais como obrigatórias. Cuida-se, sobretudo, de homologar a autonomia das partes e inclusive do poder público, para composição dos problemas como vetores essenciais do desenvolvimento contemporâneo, a partir da disponibilidade de todas as categorias de direitos possíveis, difusos e coletivos.
Abandona-se, dessa maneira, o dogma da indisponibilidade dos direitos fundamentais, algo clássico na modernidade, para adentrar-se o nebuloso campo da relativização e ductibilidade desses mesmos direitos.
O direito à liberdade, por exemplo, passa a ser disponível pela própria parte que dele é detentora, e que se vê ameaçada pelo Estado-Ministério Público, com o qual poderá negociar uma pena privativa de liberdade em troca de informações e confissão.
Também será possível negociar acordos envolvendo recomposição ao Erário, com devedores ou credores, desde que o deságio seja vantajoso ao setor público, algo muito melhor que pagar dívidas com alto impacto aos contribuintes. Tal lógica valerá, igualmente, para o campo ambiental, tributário, cível, trabalhista ou qualquer outra esfera em que estejam envolvidos direitos afetados pelos poderes públicos. O Direito in abstractocede lugar ao direito in concreto construído nos casos e nos acordos.
Quem pode dizer se um acordo vai ser bom ou ruim? Deve-se confiar no sistema de Justiça, na qualidade dos advogados, e na assistência jurídica a ser prestada também aos desassistidos e aos pobres, através dos defensores públicos, profissionais estes que detêm expertise qualificada e que trabalham inclusive em home office em numerosos casos atualmente. Será fundamental confiar nos parâmetros racionais, proporcionais e razoáveis dos acordos e na interdição à arbitrariedade dos poderes públicos.
Acordos de colaboração premiada, de leniência, ou essas informações sob recompensa que virão dos “informantes do bem” deverão estar lastreados em sólidos elementos de corroboração. O modelo de acordos será baseado em critérios jurídicos, não no capricho dos gestores públicos e muito menos na irracionalidade humana. E os precedentes sempre serão úteis.
Fábio Medina Osório, advogado e ex-ministro da Advocacia-Geral da União