Há no Brasil uma espécie de catarse coletiva e um debate intenso sobre as vísceras da República. Desde a Operação “Lava Jato”, vieram à tona práticas espúrias e patrimonialistas no modo de se conceber leis, medidas provisórias, ou acordos visando a satisfazer interesses políticos ilícitos.
A operação “Lava Jato” é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro da história deste país e uma das maiores do mundo, envolvendo políticos, empresários e agentes públicos. O Min. Celso de Mello, ao manter a prisão de um parlamentar, pontuou, certa feita, que a lei vale para todos, “não importando sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados”, o que significa dizer que decisões não são tomadas em caráter casuístico, tampouco em detrimento da República.
O Brasil estaria a caminho de deixar de ser o paraíso da impunidade dos criminosos do “colarinho-branco”. Inúmeras têm sido as tentativas de abafar essa operação, até porque a reação dos poderosos seria de se esperar.
Múltiplas instituições são responsáveis pela implementação da “Lava Jato” e precisam ser fortalecidas e prestigiadas. Trata-se de instituições republicanas, cujo funcionamento permanente e estável assegura a continuidade de políticas públicas. Refiro-me à Magistratura, Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal, Advocacia Pública Federal, Controladoria-Geral da União (atual Ministério da Transparência – seu corpo técnico), Tribunal de Contas da União, entre outras.
Em especial, vale destacar o debate recente sobre supostos privilégios que tem sido apontados em relação a Magistrados, membros do Ministério Público e Advogados Públicos Federais: os primeiros no tocante ao auxílio-moradia e os últimos, relativos ao direito aos honorários advocatícios, que ganharam por força da Lei 13.327/16.
Os ataques a essas instituições baseiam-se em tentativa de seu enfraquecimento. Confundem a opinião pública, porquanto induzem à falsa ideia de que seus integrantes gozam de privilégios, quando, em realidade, apenas estão no legítimo exercício de direitos que lhes são outorgados por leis. Qual o interesse em misturar instituições sólidas e republicanas num debate que se trava sobre privilégios odiosos no Brasil?
Parece-me que o propósito é jogar todos num mesmo patamar, precisamente num momento em que as entranhas da República são expostas por essas instituições. Se todos são, digamos assim, “corruptos”, ninguém é corrupto. Se todos são “privilegiados”, ninguém é privilegiado. Aposta-se no caos. Mas é necessário separar o joio do trigo. As instituições fiscalizadoras, ou seus membros, que exercem ou gozam direitos previstos em leis não ofendem a moralidade administrativa, nem merecem a execração pública.
É necessário tomar muito cuidado com os avanços dos discursos demagógicos no Brasil. Sob o pretexto de agradar a opinião pública de plantão, não se pode suprimir direitos, e aqui falo de um modo mais genérico, transcendendo o tema relacionado ao auxílio moradia ou direito a honorários por advogados públicos. Os demagogos normalmente aproveitam-se dos momentos de instabilidade para manipular as massas, fomentando aspirações irracionais, e isso lamentavelmente tem ocorrido no Brasil, em várias searas. Geralmente, demagogos utilizam-se de palavras simples, não da técnica, buscando mais agradar os ouvintes, do que demonstrar a consistência de sua tese.
Caberá ao STF arbitrar a discussão sobre o que é ou não correto juridicamente quanto à percepção do direito ao auxílio moradia pelos membros da Magistratura Federal, no encontro previsto para 22 de março deste ano, e aí, sim, o debate será estritamente jurídico. E devemos sempre confiar na palavra final do STF. É claro que a Magistratura Federal não deveria merecer um tratamento dissociado da Magistratura nacional, ou mesmo do Ministério Público brasileiro, dado o histórico princípio da simetria que vem pautando as carreiras em sua essência.
Não deixa de ser lamentável que os Magistrados e membros do Ministério Público estejam passando por um autêntico massacre midiático, em razão de um direito previsto em lei, e que a caça às “bruxas” agora esteja se voltando contra membros de instituições encarregadas justamente de combater a corrupção em nosso país. A confusão entre “direito” e “privilégio”, que se fez neste mercado do escândalo, confundiu a opinião pública, gerando abalo à imagem e à honra de pessoas que tem trabalhado pelo desenvolvimento de um país mais justo.
Fábio Medina Osório
Jurista, Ex Ministro da AGU, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri