O Judiciário deve decidir se o presidente da República pode nomear e dar posse a um Ministro de Estado do Trabalho que, em seu currículo, tem contra si duas reclamatórias trabalhistas transitadas em julgado. De acordo com o juiz de primeiro grau e com decisões monocráticas do TRF2, que acolheram liminar em ação popular, a nomeação teria violado o princípio da moralidade administrativa, por força da existência dessas ações trabalhistas. Recentemente, em ambiente informal, a Deputada indicada ao cargo declarou que qualquer pessoa pode responder a uma reclamatória trabalhista, e que foram injustas as decisões proferidas. Suas declarações acenderam ainda maior polêmica, pois foram proferidas numa lancha, acompanhada de amigos, e divulgada nas redes sociais.
Os advogados autores da ação popular alegaram que as aludidas declarações reforçariam a percepção de que a deputada nutriria um sentimento de “desrespeito” pela Justiça Trabalhista, o que tornaria inviável sua nomeação à luz da mentalidade administrativa. Mas será razoável uma ação popular com esse fundamento para suspender ato do Presidente da República revestido de tal importância? Não há uma invasão ao princípio da separação de poderes? Em realidade, magistrados pretendem nomear Ministros de Estado, ao sabor dos mais diversos argumentos e fundamentos.
Há certas ações que não deveriam sequer merecer trânsito no Judiciário, tal o absurdo que representam. Pretender impedir a nomeação e posse de um Ministro de Estado porque responde ou respondeu a duas reclamatórias trabalhistas, para reconhecimento de vínculos laborais, equivale a uma completa subversão do sistema constitucional vigente. E sustentar que alguém não pode criticar publicamente a Justiça do Trabalho beira o escárnio. O princípio da moralidade administrativa, inscrito no artigo. 37, caput, da Constituição Federal de 1988 não se confunde com a moralidade comum. Seu principal formulador teórico, na França, foi Maurice Hauriou, grande administrativista, ao comentar a jurisprudência do Conselho de Estado francês e perceber que havia muitas regras não escritas que traduziam espécie de moralidade institucional, um dever de lealdade às instituições.
Daí emergiu o princípio da moralidade administrativa, no início do século 20, posteriormente complementando a legalidade para dar-lhe um sentido substancial. Categorias como desvio de poder ou de finalidade floresceram no Direito francês nesse período. Com esse sentido, veio a moralidade administrativa ao Direito brasileiro. Evidente que o Judiciário pode controlar judicialmente atos administrativos viciados por afronta à legalidade formal ou substancial, ou mesmo ao princípio da moralidade administrativa, mas sem invadir competência alheias ou inventar regras arbitrárias.
Imagine-se a hipótese da nomeação de um ministro do Trabalho que estivesse envolvido numa investigação sobre exploração de mão de obra escrava em suas propriedades, em conluio com quem o nomeasse. Haveria desvio de poder e agressão à moralidade administrativa. O STF também já reconheceu desvio na nomeação de Ministro quando o ato objetivou apenas uma blindagem contra investigação criminal, o que traduziria desvio de finalidade. São situações que exigem provas concretas e admitem controles.
Todavia, imagine-se um conjunto de reclamatórias trabalhistas que qualquer cidadão comum pode responder. O Brasil, como sabemos, é pródigo em ações trabalhistas. Aliás, um dos problemas do chamado “custo Brasil” é a indústria dos processos trabalhistas. Reconhecimentos de vínculos laborais podem ser decorrência de controvérsias legítimas, envolvendo exercício do direito de petição. Não há um escândalo, uma exploração de trabalho infantil ou de trabalho escravo, nada disso, mas o exercício regular de direitos pelas partes.
A prevalecer essa espécie de precedente que estamos assistindo no caso da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ), massacrada pela mídia e impedida de tomar posse por conta de duas reclamatórias trabalhistas no cargo de ministra do Trabalho, muitas indagações e pesquisas deverão ser feitas. Seria relevante, por exemplo, levantarmos quantos e quais são os magistrados da Justiça do Trabalho que respondem a reclamatórias trabalhistas. Será que o mero fato de responderem a ações significará uma infração disciplinar? Em se houver condenação ou acordo com reconhecimento de vínculo, qual será a consequência? A expulsão da carreira? Uma ação de improbidade administrativa? Evidente que se abrirá espaço ao absurdo.
Artificialmente, será criado mais um obstáculo para que as pessoas ocupem cargos públicos. Não bata a Lei da Ficha Limpa? Vale lembrar que esta lei não contempla reclamações trabalhistas. Ao enfrentar uma discussão trabalhista, o cidadão exerce um direito e, se for condenado, nem sempre significa que essa condenação foi justa. Deverá cumprir a condenação judicial e apenas isso. Trata-se de questão de esfera privada. Obviamente pode-se aprofundar o exame de cada caso concreto, como referi ao início. Se estivermos a tratar de determinados ilícitos, a situação pode mudar. Não é a hipótese que estamos tratando. O Judiciário não tem a prerrogativa de criar regras autoritárias para nomear Ministros de Estado. Enquanto houver debate liminar, prevalece a presunção de legitimidade dos atos administrativos.
Fábio Medina Osório
Ex-ministro da AGU, advogado e doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri.