*Artigo publicado originalmente no jornal O Estado do Maranhão.
Devemos abrir mão da nossa racionalidade para punir nossos inimigos? Ou, dito de outra maneira, devemos esquecer as leis porque os fins justificam os meios?
O que nos faz modernos não é a sede de vingança beirando a barbárie, mas a capacidade de aplicarmos as regras, domando o próprio ódio, ainda que o réu seja perverso.
Quando Anders Behring Breivik, de extrema direita, matou 76 jovens num acampamento da juventude trabalhista norueguesa, vozes da mídia foram ácidas em dizer: “merece pena de morte!” Os mais lúcidos se lembram do pai de dois adolescentes mortos ao ser entrevistado pela TV da Noruega afirmar categoricamente: “não podemos. Ele deve ser julgado conforme as leis do nosso país.”
O ódio disseminou-se e cresceu no meio de nós ganhando ares de normalidade e – pasmem todos – tornou-se hegemônico diante de uma sociedade medrosa e conduzida.
A maioria de nós só quer viver num país melhor e é contra a corrupção, mas alguns de nós vêem no combate ao desvio de dinheiro público não um processo de aplicação das leis para punir culpados, mas uma cruzada moral e religiosa onde tudo é permitido, inclusive degolar o investigado, linchar o acusado e esquecer o que nos faz modernos: aplicar a mesma regra independentemente de quem seja o sujeito.
Quando permitimos que as leis sejam retorcidas para atingir quem prejulgamos culpado, ou para acolher nossas pretensões políticas, abrimos a porta para incerteza e deixamos o jardim da modernidade ser pisoteado.
Quando isso acontece, a casa tomada é a morada da nossa própria racionalidade! A próxima vítima provavelmente está hoje entre os que aplaudem vigorosamente o esquecimento da lei.
Foi assim com Robespierre e tem sido assim através dos tempos.
Todos os dias vemos crescer o efeito manada e a opinião pública caminha a passos largos na direção da idade média pós-moderna, o brejo onde a regra não importa, o juiz não precisa obedecer a lei e a imparcialidade de quem julga deve ser abandonada para a satisfação da opinião pública.
Barrabás e a crucificação nunca foram tão atuais.
Não nos socorrerá a confusão entre direito e política; entre direito penal e ideologia e entre moral e direito. Juiz refém de seus desejos políticos, escravo do senso comum e devotado à opinião pública não será protetor de nenhuma ordem jurídica.
Se o juiz for também jogador, quem vai respeitar o apito? A única trincheira que nos cabe, neste campo de guerra minado, é a do respeito às regras do jogo.
É na manutenção do equilíbrio e da equânime aplicação da lei que estaremos sólidos.
Quem nos protegerá quando a história, no futuro, nos cobrar coerência? Se a prisão preventiva existe para prevenir sociedade e processo, protegendo-os de agressões atuais ou futuras, enquanto o julgamento não acaba, de onde a legalidade de um encarceramento baseado em fatos passados?
Como condenar quem quer que seja por indícios vagos cumprindo um script político? Como ser contra o livramento condicional, as medidas alternativas ao encarceramento, as prisões domiciliares e às liberdades fundamentais? Como aplicar prisões temporárias sem especificar qual a prova que se deseja produzida?
Mas chegamos a um ponto em que o código de processo penal não importa mais. Se o juiz o cumpre – e não satisfaz mídia e sociedade civil – é porque é amigo do réu, protege a corrupção, é sócio do advogado, tem interesse na causa ou está fazendo-o a pedido de outros interessados.
Não há sequer necessidade de se ler a decisão. Integrantes da manada furiosa nas redes sociais já tomaram a decisão final e sentenciaram o caso. Há de de se ter muita coragem e determinação para aplicar o direito contra a vontade e o desejo da turba ignara.
Mas se a democratização do conhecimento é um bem que se deseja, será que o mesmo se pode dizer da opinião irresponsável das redes sociais? Não será transformando juizes em seguidores da mídia e abandonando o direito que resolveremos nossos problemas.
Um pouco de lucidez do homem médio contribuirá bem mais para que a vida dentro das leis enfim nos aconteça.
Ney Bello é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.