O juiz Sergio Moro participa do congresso da ABDE (Associação Brasileira de Direito e Economia), em Porto Alegre (RS) – Fernando Gomes/Agência RBS/Folhapress
24/09/2017
Recentemente, numa declaração reproduzida no jornal “The New York Times”, o juiz federal Sergio Moro disse que o caso conhecido como “Lava Jato” representa o fim da impunidade como regra no Brasil, especialmente para a corrupção e os crimes correlatos. Mas, segundo ele, é preciso saber se haverá uma transformação permanente ou apenas temporária.
Nesse cenário, vale refletir: concorde ou não, Sergio Moro simboliza uma face do novo Brasil, embora a Operação Lava Jato se revele uma engrenagem complexa e sofisticada, que envolve respeitadas instituições e profissionais qualificados, éticos, e abnegados.
Estamos falando de servidores e membros do Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Advocacia-Geral da União, Conselho de Controle de Atividades Financeiras, Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Receita e Polícia Federal.
Vale destacar, ainda, o papel dos desembargadores e ministros de Tribunais Superiores, que vêm ratificando entendimentos importantes no combate à impunidade.
Sempre procurei defender a compatibilidade dos direitos fundamentais dos acusados com a defesa dos interesses gerais da coletividade, e isso começa a prevalecer no Brasil.
A afirmação da jurisdição de Sergio Moro permitiu que se visualizassem os ilícitos de uma forma integrada e coerente, algo essencial à percepção do crime organizado e suas múltiplas vertentes.
Trata-se de um magistrado técnico, com visão unitária e completa sobre os fatos abrangidos na Lava Jato, conhecido por seu perfil correto e idôneo.
Uma característica central do juiz Moro -não há quem discorde- é sua dedicação ao estudo minucioso e profundo, até detalhista, dos processos sob sua jurisdição, o que certamente fez a diferença para o sucesso da operação desde o seu nascedouro.
Mesmo os adversários de Sergio Moro reconhecem nele alguns traços basilares, inerentes ao bom magistrado: ele fundamenta de forma consistente suas decisões e conhece bem o direito aplicável à matéria penal, especialmente quanto aos crimes do “colarinho branco”.
As críticas, e divergências, são inerentes ao ofício jurídico, assim como eventuais equívocos que podem ser corrigidos por recursos. As audiências nesses processos criminais costumam ser gravadas e públicas, mostrando transparência e a forma republicana na condução dos trabalhos e no tratamento dispensado aos advogados.
A Lava Jato posicionou o Brasil num patamar de visibilidade positiva no cenário mundial, incluindo-o no rol de países compromissados com o combate à corrupção.
Uma decorrência dessa nova cultura é a visão de instituições de Estado, que começa a se enraizar na sociedade.
A agenda anticorrupção não pertence apenas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, mas também ao Poder Executivo, cujos braços, através da Polícia Federal e de outros órgãos, têm participado ativamente dessa construção, não obstante a falta de compreensão de parcela da classe política.
Em uma palestra recente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembrou que algumas instituições, antes consideradas de governo, passaram a ser reconhecidas como de Estado.
Isso ocorreu com o Judiciário, com o Ministério Público e agora com a Polícia Federal, que pleiteia mais autonomia orçamentária e administrativa.
Diante dessa nova realidade, também o setor privado torna-se responsável pelo combate à corrupção, por meio das exigências de integridade corporativa e de respeito à legislação anticorrupção.
Trata-se de um outro efeito da era pós-Lava Jato e de uma adaptação do Brasil a imperativos do sistema global. Empresas privadas necessitam combater práticas ilícitas e cooperar com as autoridades públicas nesse enfrentamento.
O juiz Sergio Moro tem muito a ver com toda esta nova cultura anticorrupção no Brasil. Pode-se afirmar que é parte desta transformação, ainda que como uma “face” ou símbolo deste Brasil que pode emergir com uma poderosa agenda econômica ligada à solidez das instituições democráticas e republicanas.
Então, quais são as ameaças a todo esse processo civilizatório em curso? Um risco seria as instituições confundirem autonomia com corporativismo, arbitrariedade e falta de limites às suas ações, incorrendo numa espécie de deslumbramento com os holofotes.
Outra ameaça seria a de legisladores atuarem em causa própria ou investigados tentarem desconstruir a operação a partir de ataques à reputação dos investigadores e julgadores, valendo-se do poder político e econômico.
A população dirá, em 2018, o rumo a ser trilhado. Tudo indica que esse caminho não terá retrocesso, pois a sociedade, por meio da imprensa e das redes sociais, permanecerá atenta e vigilante. O cidadão exercerá, pelo voto, suas escolhas pautadas por juízos cada vez mais críticos e maduros.
Todavia, a democracia não se esgota no voto. Como já alertava Eduardo García de Enterría, um dos maiores juristas contemporâneos, o voto nunca foi, e nem será, um cheque em branco para o cometimento de crimes.
Assim, mesmo aos eleitos, ou aos concursados, ou aos nomeados, vale a advertência de que estão sob o império da Constituição e que a lei vale para todos. A desobediência pode acarretar perda de mandato, de função pública e até prisão.
A democracia nunca pode ser confundida com impunidade. O recado que o Brasil vem passando ao mundo é muito claro: aqui impera um Estado democrático de Direito.
FÁBIO MEDINA OSÓRIO é jurista, ex-ministro da Advocacia-Geral da União e doutor em Direito Administrativo (Universidade Complutense de Madri)