Discurso de posse do Desembargador Federal Fábio Prieto de Souza, TRE-SP

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Em sessão solene realizada na última sexta-feira (25/8), presidida pelo des. Mário Devienne Ferraz, tomou posse como juiz efetivo do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) o desembargador federal Fábio Prieto, na classe juiz federal.

A vaga foi deixada pela desembargadora Marli Ferreira, que atuou no TRE-SP no biênio 2015-2017, tendo proferido 1.992 votos no período.

Confira abaixo o discurso de posse proferido pelo Desembargador Prieto de Souza por ocasião de sua posse.

COM INFORMAÇÕES DO TRE-SP

Discurso de posse do Desembargador Federal Fábio Prieto de Souza, no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo

O Brasil está envolto em muitas crises.

Há duas, porém, que, enfrentadas e vencidas, podem viabilizar o equacionamento e a superação de várias outras. A crise de lideranças. E a crise de projetos. Muitas nações prosperaram, ao superar a estagnação econômica, a desigualdade social, a falta de funcionalidade dos sistemas de governança e outros graves problemas comunitários.

 

Para avançar sobre estas dificuldades imensas, antes foi preciso contar com cidadãos dispostos a correr o risco de conduzir, de liderar, de lançar ideias e projetos, com o sincero e genuíno compromisso do apreço pelo futuro da coletividade. Nos dias atuais, o debate público está envenenado pela discórdia pessoal. Quase tudo ficou restrito à difamação de hoje, como resposta à injúria de ontem, fonte da calúnia de amanhã.

 

É preciso romper o círculo vicioso, para o bem do País. Que cada cidadão faça uso da palavra, para empolgar e convencer, no sentido de que podemos ter um futuro melhor.

 

Desejo honrar, a partir do sentimento de retribuição, a posição de liderança que me concederam todos os que se encontram nesta posse solene e muitos outros que ajudaram na minha trajetória profissional.

 

A minha colaboração modesta só pode ser prestada na área do sistema de justiça, no qual passei toda a minha vida. Acredito na boa-fé dos que fizeram a Reforma do Judiciário de 2004.

 

Mas está na hora de reconhecer que esta boa-fé da liderança da ocasião foi insuficiente para produzir um bom projeto de sistema de justiça. O patrimonialismo. O clientelismo. O assembleísmo corporativo. O desperdício de dinheiro público. O pouco caso com a independência funcional dos juízes. A preguiça premiada. A burocratização. A demagogia. A falta de decoro.

 

A Reforma do Judiciário de 2004 não criou nenhum destes nossos velhos males. Mas contribuiu muito para reforçá-los, institucionalizá-los. E deu força a um vício novo e extremamente perigoso para a sociedade brasileira: a sindicalização da magistratura. A criação dos conselhos de justiça, pelo mundo, tem inspiração e causas muito variadas. Na Europa Ocidental, por exemplo, tais órgãos foram concebidos, em boa parte, para diminuir a influência do Poder Executivo sobre a atividade dos juízes.

 

Aqui, fez-se o contrário. Na longa história de abusos recíprocos, entre os poderes do Estado, chegou-se ao nível da inovação. No Poder Executivo, foi criada a “Secretaria de Reforma do Poder Judiciário”. A harmonia constitucional entre os Poderes do Estado é obra do compromisso e da sensibilidade dos homens públicos.

 

Seria inadmissível que, diante de fragilidades dos Poderes Legislativo e Executivo, o Judiciário ousasse criar tal ou qual repartição de reforma das atividades legislativas ou executivas.

 

A Secretaria de Reforma do Poder Judiciário, dentro do Poder Executivo, foi uma iniciativa profundamente infeliz, autoritária, censurável, de intervenção simbólica de um Poder de Estado sobre outro.

 

Quanto aos conselhos de justiça, aos dois existentes, dois outros foram acrescidos. Ao Conselho da Justiça Federal, que integrei na qualidade de Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, e ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, foram somados os novos Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público.

 

O modelo com quatro conselhos de justiça é desperdício de dinheiro público. O contribuinte brasileiro paga quatro estruturas caríssimas. Prédios, conselheiros, servidores, vencimentos, aposentadorias e outros benefícios.

 

Somados estes quatro conselhos de justiça, o Brasil deve ter um dos maiores e mais caros sistemas de controle e fiscalização judiciária do mundo. Com tal fragmentação, os órgãos são necessariamente disfuncionais. As decisões são contraditórias e inconciliáveis. A composição dos conselhos é vulnerável ao corporativismo.  Os mandatos são temporários.  De prazo curto. A instabilidade decisória e gerencial é a regra.

 

Isto em um Poder de Estado, cujo papel está vinculado ao exercício da autoridade pública, para a garantia da previsibilidade e da estabilidade. Passados treze anos, com custos econômicos astronômicos, estes conselhos não zelaram, sequer, pela fixação do teto salarial.

 

São incapazes de responder, de imediato, se certo juiz recebeu a correta indenização pela prestação de serviços extraordinários, como qualquer profissional, ou o que se chama de supersalário, na justa indignação da sociedade.

 

Em outras palavras, depois de treze anos, com custos econômicos astronômicos, repita-se, estes conselhos não controlam, nem fiscalizam, com eficiência e segurança, um aspecto elementar, básico, da carreira judiciária.

 

A majoritária magistratura séria e trabalhadora logo entendeu o súbito entusiasmo do então inexpressivo, mas barulhento, sindicalismo de toga, com este modelo de governança. A Lei Orgânica da Magistratura de 1979 proibiu o clientelismo nos tribunais. Juízes prediletos de desembargadores não mais puderam ser colocados nos tribunais, para o exercício de funções subalternas, meramente administrativas, mas com os vencimentos da Magistratura. A Lei de 1979 diz que o juiz só pode ser convocado para substituir desembargador, em situações excepcionais e apenas para julgar processos.

 

Quando um desembargador fica doente, o juiz é convocado, no tribunal, para julgar os processos, no período da enfermidade, por exemplo. Com a Reforma do Judiciário, contra a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura, logo surgiram normas para autorizar o afastamento de juízes do serviço.

 

A figura paradoxal do juiz-assessor proliferou. Qualquer cidadão compreende que, com os impostos, paga melhor e qualifica o juiz com a independência para decidir, porque os demais servidores não devem e não podem realizar o ato político de julgar. Esta diferença entre o juiz e os demais servidores é a própria razão da existência do Poder Judiciário.

 

Mas, com a Reforma de 2004, não apenas os “juízes-assessores” apareceram em grande número, como outras causas de afastamento do serviço foram autorizadas.

 

O exercício de mandato classista, em associações privadas de juízes, foi vulgarizado e também justificou milhares de faltas ao serviço. Ninguém sabe quantas são as associações de juízes. Como foi ampliado o número de entidades ou de seus diretores.

 

Muitas destas associações de juízes passaram a atuar como verdadeiros sindicatos, prática vedada aos magistrados, agentes do poder estatal.

 

O Conselho Nacional de Justiça decidiu reiteradas vezes que os tribunais não tinham o direito e o dever de avaliar pedidos de afastamento do serviço formulados por dirigentes de associações de juízes inexpressivas, que não representam nada, nem ninguém. A Reforma de 2004 reproduziu, no Judiciário, o modelo sindical brasileiro, cartorial e indutor de lideranças medíocres, incapazes de formular uma proposta séria e aceitável de sistema de justiça. Os tribunais contavam, ainda, com escolas de juízes, antes da Reforma do Judiciário. Eram experimentos precários, que nunca tiveram a estima da Magistratura responsável e trabalhadora, que só tem tempo para julgar os processos.

 

A Reforma do Judiciário incentivou o reforço de verbas públicas e a temerária concessão fiscal de orçamento próprio para as tais escolas. São dezenas pelo País. A pauta escolar é, não raro, precária, com matérias do curso de graduação ou o exame da jurisprudência, hoje acessível de qualquer computador do mundo.

 

O projeto é insensível. Diante das necessidades sociais, sobretudo com a educação básica e fundamental, não é justificável a existência das custosas escolas de juízes.

 

No Brasil, os magistrados são bacharéis em direito. Submetidos a rigoroso concurso público de provas e títulos. A atividade de julgar submete o magistrado à chamada educação continuada forçada. É impossível julgar, sem estudar. A pedagogia da Reforma do Judiciário também é a porta aberta para o dirigismo do agente político que é o juiz. Todas estas medidas resultaram em um afastamento em massa do serviço judiciário.

 

Como resultado, muitos países no mundo não têm, em seus quadros, o número de juízes que o contribuinte brasileiro remunera em desvio de função, nas assessorias, nas escolas de juízes e nas associações privadas de magistrados. Há juízes que não fazem uma sentença há cinco, dez anos. Vivem de sinecura em sinecura.

 

A partir da Reforma do Judiciário, também foram criados grupos ditos de trabalho, gabinetes, comissões, assessorias, conselhos dos conselhos e toda sorte – ou azar, para o contribuinte – de lugares onde se pode lutar por um mundo melhor – menos, fazer sentenças.

 

Para legitimar a militância da preguiça premiada, certo discurso de populismo judiciário chegou a sustentar que o “novo juiz” deveria estar junto ao povo, na rua, não no gabinete de trabalho. A pior, e mais perigosa, demagogia, porém, foi operada com o assembleísmo corporativo vestindo a pele da democracia.

 

Há muito, Sérgio Buarque de Holanda advertia, no clássico “Raízes do Brasil”, que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.

 

Hans Kelsen, o grande jurista consagrado no campo da filosofia do direito, com o clássico “A Teoria Pura do Direito”, passou o exílio provocado pelo Nazismo nas universidades americanas e escreveu outra obra, sobre a qual devemos, hoje, meditar, “A Democracia”:

 

“Não é só a exigência de legalidade na função aplicadora de Direito que pode levar, no interesse da democracia do todo, a uma restrição do princípio democrático na organização do poder administrativo e do judiciário. A exigência de uma administração eficiente caminha nesse mesmo sentido. Se uma administração ineficiente vem a pôr em risco a própria existência de um Estado democrático e se um menor grau de democratização assegura uma administração mais eficiente, o tipo menos democrático de organização administrativa pode ser escolhido, com a finalidade de manter a democracia do todo. É essa, sem dúvida, a razão pela qual, em todas as democracias modernas, o método pelo qual se nomeia o chefe do executivo é muito menos democrático do que o método pelo qual se elege o parlamento. O presidente dos Estados Unidos, eleito indiretamente pelo povo e não responsável perante o parlamento, é um órgão menos democrático que a Câmara de Deputados. A nomeação de juízes pelo chefe do executivo é certamente menos democrática que a eleição dos mesmos pelo povo, enquanto a norma de que somente advogados provectos podem ser nomeados e, sobretudo, os princípios de que um juiz tem de ser independente dos que o nomeiam ou elegem e o de que o mesmo é irremovível, são tudo menos democráticos. Não obstante, não hesitamos em considerar democrático um Estado cuja constituição estabelece que juízes independentes e irremovíveis sejam nomeados pelo chefe do executivo, pois acreditamos que, para um Estado democrático, esse tipo de administração judiciária é melhor que o outro” (“A Democracia”, pág. 267, Edit. Martins Fontes, 1ª edição, 1.993).

 

 

Robert O. Paxton, Professor Emérito da Columbia University, nos Estados Unidos, também tem algo a nos lembrar no seu clássico “Anatomia do Fascismo”:

 

“Os fascistas eram mestres na manipulação da dinâmica de grupos: grupos de jovens, associações recreativas, comícios do partido. A pressão era particularmente poderosa nos pequenos grupos. Neles, a maioria patriótica controlava os não-conformistas pelo sentimento de vergonha ou da intimidação direta, obrigando-os, no mínimo, a ficar de boca fechada. Sebastian Haffner lembra-se de como o seu grupo de juízes estagiários foi enviado a um retiro, no verão de 1933, onde esses jovens altamente cultos e preparados, a maioria deles não nazistas, viram-se transformados num grupo coeso por meio de marchas, cantos, uniformes e exercícios militares. Resistir parecia não fazer sentido, e certamente não levaria a parte alguma que não à prisão e ao fim de uma tão sonhada carreira. Por fim, com espanto, pilhou a si próprio erguendo o braço cingido por uma braçadeira com a suástica, na saudação nazista”.

 

 

Nas grandes democracias do Ocidente, o Judiciário e as Forças Armadas são as chamadas instituições garantidoras de última instância do próprio sistema democrático.

 

É por isto que, nestes países, e no Brasil, não há democracia interna nos tribunais e nos quartéis. Juízes e militares não podem participar do jogo democrático. É grave e distinta a responsabilidade social, com a democracia, destes profissionais públicos.

 

Não obstante, a Reforma do Judiciário foi o ponto de partida para o assembleísmo corporativo mais acirrado. O grupo minoritário e barulhento dos “juízes na rua” bradou, unido, por artificiais “eleições diretas” sem povo, dentro da estrutura judiciária agigantada pelo aparelhamento burocrático.

 

Todos conhecemos o mal que o assembleísmo corporativo produziu nas universidades públicas. Levar isto aos tribunais é condenar a Nação duas vezes. O seu futuro, nas universidades, e o seu presente, nas Cortes de Justiça.

 

Trata-se, apenas, do velho, preguiçoso e confortável corporativismo “do ut des”, “serva me, servabo te”.

 

A desordem dos recursos humanos, a preguiça premiada, a sindicalização, a burocratização e uma série de graves vícios produziram grandes danos ao serviço judiciário.

 

Corregedor e Presidente do maior tribunal federal do País, ouvi as críticas justas e as lamentações da expressiva maioria dos juízes sérios e trabalhadores. Os que levam o bom nome do Judiciário. Substituem os ausentes e fazem o trabalho dobrado.

 

Se, de um lado, os adesistas convertidos estavam contemplados à farta, de outro, era preciso manter os juízes sérios e trabalhadores em silêncio.

 

Aberta a “Caixa Preta”, todavia, foram encontrados juízes desonestos. Mas não eram tantos, quanto prometia o discurso diversionista do “Caixa Dois”.

 

Foi preciso, então, produzir novo instrumento de desmoralização difusa contra a magistratura.

 

A Lei dos Juízes de 1979 diz que exceder o prazo, injustificadamente, para decidir os processos, é falta disciplinar.

 

O advérbio injustificadamente faz todo sentido. O Brasil tem, como regra, varas e tribunais abarrotados de processos. Se não houvesse a possibilidade de uma justificação, bastaria pegar um processo entre milhares e processar o juiz.

 

Não obstante a clareza da lei, o Conselho Nacional de Justiça criou uma certa Representação por Excesso de Prazo. Sem a exigência de justificação.

 

Da noite para o dia, surgiram centenas ou milhares de representações manifestamente ilegais contra os magistrados.

 

O Conselho Nacional de Justiça, sem considerar se o atraso do caso estava, ou não, justificado, passou a determinar o  imediato julgamento dos processos dos reclamantes.

 

Isto privilegiou quem usou ilegalmente o sistema de justiça. Quem usou a lei, ilegalmente, passou o seu processo na frente, no sistema congestionado e lento.

 

O expediente autorizou o discurso de que milhares de juízes estavam sendo investigados, quando isto nunca aconteceu.

 

A demanda artificial, falaciosa, de inexistente serviço disciplinar, também serviu para a exigência de novas contratações de recursos humanos, a compra de mobiliário e equipamentos, a utilização de prédios, o aumento do orçamento público, a convocação de “juízes-assessores”. É hora de rever o sistema de justiça saído da Reforma de 2004.  Os seus graves desvios. A sua falta de funcionalidade. O desperdício de dinheiro público. Os privilégios, aos poucos maus magistrados. A jornada dupla, a desmoralização, a ameaça de processos ilegais contra os muitos juízes dedicados a levar o bom nome do Poder Judiciário do Brasil.

 

A primeira providência é a extinção destes quatro conselhos de justiça. Precisamos de apenas um, como em outros países. Os seus integrantes devem ter estabilidade e integrar o ápice do sistema de justiça, porque serão titulares da chamada responsabilidade vertical de última instância. Apenas os Ministros do Supremo Tribunal Federal podem exercer esta alta magistratura administrativa.

 

É certo que, não obstante muitas alterações tenham começado a desafogar o Supremo Tribunal Federal, ainda há sobrecarga pesada na Suprema Corte do Brasil.

 

Será preciso renovar esta discussão, mas a alta magistratura administrativa não pode deixar de ficar sob a competência do Supremo Tribunal Federal.

 

O conselho de administração de justiça – não apenas do Judiciário ou do Ministério Público – deverá cuidar da supervisão disciplinar das corregedorias dos tribunais, do regime remuneratório de juízes e integrantes dos ministérios públicos e só de outros assuntos essenciais para o cidadão.

 

Não deve envolver-se em todo e qualquer tema, como o especialista em “cambalhotologia”, de Dostoiévski, com o risco de interferir na independência dos juízes, com desperdício de energia, tempo e dinheiro público.

 

Os atuais conselhos de justiça têm servidores de primeira linha, em todas as áreas. Não será preciso contratar ninguém. Sobrarão, ainda, servidores para o serviço judiciário.

 

Prédios suntuosos poderão ser destinados para os estudantes. Os prédios magníficos destes atuais conselhos de justiça. Destas muitas dezenas de escolas de juízes.

 

A Reforma de 2004 assumiu claro perfil corporativo-sindical, não obstante a boa-fé de seus líderes, quando da concepção do projeto.

 

Agora, é preciso realizar uma reforma liberal do sistema de justiça, consentânea com o Estado Democrático de Direito, em prol da democracia, do valor social do trabalho e da livre iniciativa.

 

Os cidadãos e a magistratura séria e trabalhadora merecem esta iniciativa, em prol de um futuro melhor para o Brasil.

Muito obrigado.

São Paulo, em 25 de agosto de 2017.

Desembargador Federal Fábio Prieto

Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo

Leia o post anterior:
Fábio Medina Osório, para a Folha de S. Paulo: “Compliance bancário e a lentidão da Justiça”

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