O modelo de foro por prerrogativa de função adotado no Brasil padece pelos excessos: por um lado, confere essa proteção a quase todos os cargos e funções dos três poderes na União, Estados e Municípios. Por outro, determina a apuração de crimes comuns, sem vínculo com o exercício da função, a tribunais ou cortes superiores. No Brasil, a origem é a Constituição Imperial de 1824, que determinava o Senado como foro para delitos praticados pelos membros da família real, ministros, conselheiros, senadores e deputados. As cartas magnas seguintes mantiveram o instituto e seguiram ampliando o número de funções ou pessoas protegidas.
Hoje, sob a Constituição Federal de 1988, o foro por prerrogativa de função abriga desde o presidente da República até prefeitos, dependendo da Constituição do Estado em que está localizado o município. São inúmeros os cargos nos Poderes Legislativo e Judiciário cujos inquéritos e ações penais têm como foro cortes superiores. Segundo levantamento da Consultoria Legislativa do Senado, aproximadamente 55 mil pessoas são beneficiadas com o foro privilegiado nas acusações de crimes comuns, com a maioria concentrada no Judiciário e no Ministério Público.
Em 28 anos de vida da Constituição Federal, o Brasil testou suas próprias regras. Natural que, ao longo do processo de amadurecimento de uma democracia tão jovem, seja preciso repensar diretrizes e a aplicação de instrumentos. Vivenciamos agora uma realidade de transição. Em plena crise política e moral do ambiente nacional, descortinam-se os pontos que merecem reavaliação e, em meio às discussões, está o foro privilegiado.
Antes de abordar se merece reformulação ou extinção – e com qual velocidade –, é importante reiterar que o instrumento teve razão de existir na linha do tempo de nossa história. O foro especial vigente nasceu sob a égide da redemocratização. O Brasil saía de um período autoritário, no qual representantes públicos de todos os poderes foram perseguidos, e a ferramenta foi projetada para que pessoas com funções sociais relevantes fossem julgadas por tribunais correspondentes a esses cargos. A finalidade não era estabelecer privilégios, mas proteger o exercício das atividades do mundo público em um cenário político onde ainda nos firmávamos.
Passadas três décadas e em realidade distinta, talvez seja a hora de refletir sobre a necessidade de promover uma mudança integral ou o aperfeiçoamento dessa ferramenta. Um ponto a ser considerado no debate é o alcance gigantesco da aplicação do instrumento. Hoje, o foro privilegiado não é apenas prerrogativa de congressistas, ministros de estado, chefes do Executivo federal ou dos próprios ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O instrumento, dependendo do Estado e por meio de suas respectivas Constituições, alça à lista desde deputados e secretários estaduais; prefeitos e vereadores; membros da magistratura, do ministério público, das defensorias e da advocacia pública; auditores de tribunais de contas; titulares de fundações, autarquias e empresas públicas; delegados de polícia, comando da polícia militar e do corpo de bombeiros. Visto que as constituições estaduais também tratam do instituto, o debate terá de ser levado às essas esferas.
Sobre a extensão de aplicabilidade, limitar a prerrogativa de foro aos chefes de poderes em esfera federal e estadual e, com eles, os ministros do STF, é uma ideia simpática. Considero nesse âmbito os representantes dos estados porque eles estão à frente de instituições completas – não apenas de parte delas –, e a finalidade de abarcá-los seria evitar que a judicialização de seus atos possa colocar em risco o desempenho do cargo.
Como se trata de defesa da atividade, e não da pessoa física, também vejo com bons olhos a sugestão de centrar o foro nos atos praticados em função do exercício do cargo. Quer dizer que ações levadas a cabo por essas pessoas, e que não tenham essa relação direta com a função exercida, seriam levadas a julgamento em primeira instância. Por outro lado, em meio ao que já se propôs, não me parece uma boa via a criação de tribunais específicos. Já temos um poder Judiciário de enorme estrutura, inclusive um dos mais caros do mundo, e além disso, particularmente enxergo com certa preocupação a alternativa de uma via de Justiça muito particular.
Um risco desse caminho é a falta de visão plural da magistratura sobre um determinado tema, o que poderia tornar as estruturas amarradas demais aos seus próprios conceitos. O debate estrutural, inclusive, deve ser abordado e tem viés ainda maior. A leitura geral atrela o foro à impunidade, mas com os cerca de cem milhões de processos que congestionam a Justiça – que opera sob diretrizes de uma Lei Orgânica da Magistratura (Loman) de 1979, elaborada ainda na época do governo militar –, não é a prerrogativa de foro uma culpada isolada. Portanto, a reforma do Judiciário é também urgente para o país. No que diz respeito à Loman, até agora nenhum presidente do Supremo encaminhou uma proposta de reformulação ao Congresso Nacional. E é da mais alta instância de Justiça brasileira a prerrogativa de fazê-lo, conforme determina a Constituição.
Apesar de enxergar razões para acabar com o ampliado foro privilegiado, acredito, no entanto, que melhor seria deixa-lo para a próxima legislatura. Deve-se, sim, rever o instrumento, mas não sou a favor de conduzir essa conversação a toque de caixa. Um ano é tempo para amadurecer o quadro geral: organizar o proposto e levantar novas questões, além de compreender as distorções para abordar a conversa durante o processo eleitoral de 2018, conhecendo o posicionamento dos candidatos. Na era das tecnologias e do volume de informações, onde se exige respostas rápidas e posições firmes sobre temas complexos em poucos minutos, a via da ponderação parece não ter popularidade nas rodas de conversas. Mas é o caminho acertado para conduzir as mudanças necessárias para a sociedade brasileira.
Marcos da Costa – Presidente da OAB-SP
FOTO: Ana Volpe – Agência Senado