Em agosto do ano passado, o jornal Huffington Post chamou os promotores americanos de “Os Intocáveis”. O jornal não estava se voltando contra todos os promotores, porque a maioria cumpre suas funções de uma forma decente. Se referia às “ovelhas negras” da classe, que forjam provas, coagem testemunhas e usam de todo tipo de artimanhas para obter condenações, mesmo sabendo que réus são inocentes, porque têm imunidade.
Um currículo de condenações sucessivas, com repercussão na mídia, rendem promoções na carreira, entrevistas na TV, popularidade e carreiras políticas, especialmente em estados mais conservadores, em que os eleitores festejam qualquer condenação, certa ou errada.
No caso noticiado pelo jornal, um homem inocente, negro, havia passado 18 anos na prisão, devido à “má conduta” dos promotores. Provada sua inocência, ele foi solto, mas nada aconteceu aos promotores. Não enfrentaram nem mesmo um processo administrativo. Eles têm imunidade.
À época, representantes da Promotoria defenderam a tese de que “a imunidade completa e absoluta contra responsabilização civil é fundamental para o exercício da profissão”. Argumentaram que “o autocontrole e as sanções profissionais impostas pela seccional da American Bar Association (ABA) do estado são suficientes para coibir a má conduta”.
O jornal apurou que não há casos de processos administrativos movidos nem pela ABA nem pela Promotoria por má conduta de promotores. Ao contrário, estudos revelaram que más condutas de promotores raramente sofrem qualquer sanção disciplinar.
No entanto, juízes e advogados não são intocáveis. Juízes perdem os cargos, advogados perdem suas licenças, com bastante frequência. Ambos enfrentam processos administrativos, sofrem sanções disciplinares, são processados e, vez ou outra, acabam na cadeia.
Reforma do cenário
Nesta semana, porém, esse cenário mudou — uma alteração nos costumes aparentemente pequena, mas que abre uma brecha no escudo da imunidade que protegia os promotores e procuradores do país até agora.
Um tribunal federal de recursos, mantendo sentença de primeiro grau, decidiu, por dois votos a um, que promotores, de fato, têm imunidade no exercício de sua função. Mas a imunidade não é absoluta. E não é, realmente, relativa ao cargo de promotor, mas, sim, de seu trabalho.
O caso perante um painel de três juízes do tribunal de recursos se refere à condenação, em 1985, de Nathson Fields, negro e membro de uma gangue de rua, acusado de assassinato de duas pessoas. Depois de passar 17 anos na prisão, Fields foi inocentado em um segundo julgamento. Descobriu-se que os promotores Lawrence Wharrie e David Kelley coagiram testemunhas e fabricaram provas para obter a condenação.
O juiz Thomaz Maloney, que presidiu o julgamento, também não era inocente. Ele aceitou, segundo se apurou mais tarde, um suborno de 10 mil dólares de um segundo réu, para livrá-lo da prisão. Mesmo assim, o condenou. O juiz foi julgado e condenado por corrupção. Pegou uma pena de 15 anos, segundo o Chigado Tribune. Morreu na prisão em 2008.
Diferentemente do caso do ano passado, em que o ex-prisioneiro inocente se limitou a xingar publicamente os promotores, por sequer pedir desculpas, Fields processou os promotores por manipulação do julgamento que resultou em sentença errada de pena de morte e 17 anos de sua vida atrás das grades.
Os promotores se defenderam, nas duas instâncias, com o argumento de que sua função lhes garantia imunidade. E que, por isso, Fields sequer poderia processá-los.
Esse argumento valeu para o promotor auxiliar David Kelley, que só participou das ações qualificadas como “má conduta” quando o processo já estava em andamento. Não valeu para Lawrence Wharrie. Os tribunais concluíram que ele coagiu testemunhas e fabricou provas antes da iniciação do processo. Na verdade, antes mesmo da prisão de Fields, quando o promotor procurava alguém para processar, porque o caso havia ganhado notoriedade.
“Embora as provas apresentadas no julgamento sejam protegidas pela imunidade atribuída aos promotores, essa imunidade não protege as ações do promotor quando ele age fora de suas funções essenciais”, escreveu o juiz Richard Posner, pela maioria.
“Wharrie está nos pedindo para abençoar uma injustiça arrepiante. Ele agiu como um investigador antes que a ação existisse, coagiu testemunhas e fabricou provas que, depois, usou no julgamento. Seu pedido é uma ofensa ao tribunal e totalmente absurdo”, declarou o juiz.
“Um promotor não pode proteger seu trabalho investigativo sob a égide da imunidade absoluta, apenas porque, depois que um suspeito é preso, indiciado e julgado, a pré-investigação possa ser descrita, retrospectivamente, como uma preparação para um possível julgamento. Se for assim, todos os promotores podem se proteger contra responsabilização por violação dos direitos constitucionais do cidadão, ao assegurar que qualquer acusado seja levado a julgamento”, ele escreveu.