Entra em vigor nesta quarta-feira (29) a chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que responsabiliza e passa a permitir a punição de empresas envolvidas em atos de corrupção contra a administração pública nacional ou estrangeira. A lei foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em agosto do ano passado.
Ainda precisam ser definidas as regras para que as companhias possam criar uma área interna que previna esse tipo de ato.
Até então, as empresas podiam alegar, caso fossem flagradas em alguma prática ilícita, que a infração havia sido motivada por uma atitude isolada de um funcionário ou servidor público. Acabavam sendo punidos com maior frequência apenas os agentes públicos flagrados, e era muito difícil comprovar a culpa da companhia ou do empregado.
A partir de agora, porém, as empresas envolvidas em fraudes serão alvos de processos civis e administrativos e podem pagar multa de 0,1% a 20% do faturamento anual bruto (quando não for possível calcular essa receita, o valor pode ser estipulado por um juiz e variar entre R$ 6 mil e R$ 60 milhões). Em alguns casos, a Justiça pode até determinar o fechamento da companhia.
De acordo com o advogado Giovanni Falcetta, do escritório do Aidar SBZ, a principal diferença é que a nova lei permite que as empresas sejam punidas sem a necessidade de comprovar culpa ou dolo (por meio da chamada “responsabilidade objetiva”).
“Acredito que a gente vai passar por uma mudança cultural no jeito de fazer negócios no Brasil. Antes, a gente lidava com empresas estrangeiras que estavam sujeitas a normas internacionais que não existiam aqui. (…) E [também lidava com] empresas aqui no Brasil que fazia o que bem queriam”, explica.
Setor de prevenção
Pela nova lei, as companhias terão que se preocupar com a criação de um setor de “ética empresarial” para prevenir internamente atos de corrupção – chamado pelo mercado de “compliance” (conformidade, em inglês).
Para isso, a Lei Anticorrupção prevê a elaboração, pelo Executivo, de uma regulamentação com detalhes de como precisa ser esse programa de “compliance” adotado pelas empresas. De acordo com especialistas, ele não deve diferir muito de guias internacionais, como o da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“A regulamentação será importante porque traz a necessidade de as empresas terem códigos de conduta, políticas, programas de conformidade efetivos, porque isso será julgado com relação à sua efetividade”, diz Rogéria Gieremek, gerente da área de compliance da Serasa Experian. “Todo empresário vai pensar duas vezes. Se todo mundo parar de oferecer e dar propina, não restará outra alternativa senão fazer a função que se tem que fazer”, avalia.
“As empresas devem desenvolver a tríade ‘prevenir, detectar e remediar'”, completa o advogado Falcetta.
Rogéria também explica que, entre as ações importantes a serem mantidas pelas companhias, estão o treinamento dos funcionários, a existência e a divulgação de um código de ética, e politicas para recebimentos de presentes, entre outras.
O que será regulamentado
Por enquanto, o texto da lei fala apenas que será levada em consideração para a aplicação das sanções, entre outros itens, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
A Controladoria Geral da União (CGU) disse que elaborou uma proposta de regulamentação que está sendo finalizada com a colaboração de outros órgãos do governo, sob coordenação da Casa Civil. A CGU informou, no entanto, que não há uma data definida para assinatura e publicação do projeto.
Entre os pontos que precisam ser regulamentados, segundo a CGU, está como será o processo administrativo previsto na lei e os critérios para atenuar ou agravar a punição às empresas infratoras (onde entra o sistema de “compliance”).
“No fundo, a lei não fala em obrigação, mas diz que se, por acaso, você for pego ou tiver algum problema, tendo um programa de ‘compliance’, meios e modos de evitar a fraude, você atenua a pena”, afirma o advogado Falcetta.
A Lei Anticorrupção prevê, ainda, um programa de cooperação para as companhias que colaborem com uma eventual investigação. “Você adianta o que aconteceu e busca fazer um acordo de leniência [suavização], o que reduz muito as penas”, explica Falcetta. Ao colaborar com as investigações, por exemplo, a empresa pode ter a multa reduzida em até dois terços.
O texto prevê também a criação de um Cadastro Nacional de Empresas Punidas (Cnep), com a publicação dos nomes delas e as sanções aplicadas com base na lei.
Entidades empresariais questionam
Entidades empresariais ouvidas pelo G1 avaliam a nova legislação como positiva para o país. Algumas, porém, se preocupam com o fato de a companhia poder ser punida sem a necessidade da comprovação de culpa.
Em nota técnica, a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) avalia a possibilidade de a responsabilização da pessoa jurídica ser revista pelo Legislativo. “Caso fique provado que a empresa adotou todos os mecanismos de proteção e combate à corrupção e que, mesmo assim, ocorreu um fato alheio ao seu conhecimento (cometido isoladamente por determinado funcionário), ela não deverá ser responsabilizada, principalmente se colaborar com as investigações”, diz o texto.
O parecer da FecomercioSP sustenta que, em alguns casos, a companhia pode não conseguir controlar a ação isolada de um funcionário específico que realizou o ato ilícito. “Trata-se de um incidente que fugiu dos mecanismos de controle, ficando alheio ao conhecimento dos dirigentes, acionistas e cotistas da empresa (e até mesmo dos demais funcionários)”, cita a nota. “Nesses casos, após processo investigativo, a pessoa física que provocou o ato ilícito deveria ser responsabilizada, eximindo a empresa da responsabilidade.”
A professora Heloisa Estellita, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), analisa que pode existir algum questionamento no futuro com relação à constitucionalidade da lei, justamente porque ela prevê a culpa da empresa sem que haja comprovação.
“Não precisa provar que um funcionário de uma empresa corrompeu outro com consciência e vontade da cúpula representativa da pessoa jurídica. Basta que tenha havido o ato e a fraude (…). A gente está falando em responsabilizar uma pessoa [no caso, a empresa] por algo que ela não sabia”, diz.
Rogéria, da Serasa Experian, acredita que, conforme os casos forem acontecendo, será criado um histórico de decisões judiciais (jurisprudência) sobre o tema. “Há pessoas que apontam pontos de melhoria, realmente toda lei pode ser aprimorada, mas teremos o Ministério Público e o Judiciário como parceiros”, destaca.
De acordo com o gerente de Relações Governamentais da Amcham-Brasil (Câmara Americana de Comércio no Brasil), Felipe Magrim, foram feitas discussões sobre o texto da legislação em reuniões da entidade. “É positivo. Há um certo clima de espera para ver como a lei vai ser de fato aplicada.”
Para o presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), Roque Pellizzaro Junior, empresas maiores do setor varejista já têm áreas de “compliance”. Ele acredita, contudo, que estabelecimentos menores podem começar a se preocupar mais com a difusão desses valores entre seus funcionários.
Controles pelas empresas
Gerónimo Timerman, sócio-líder da área de Forensic Services (serviços forenses, em inglês) da consultoria KPMG no Brasil, acredita que atualmente é muito difícil uma empresa brasileira ter 100% de todos os tradicionais controles de “compliance” implementados. De acordo com ele, o mercado trabalha atualmente com regulamentações internacionais. “Vai depender muito de como vai ser a regulamentação do governo”, diz.
Uma pesquisa feita pela KPMG com cerca de 80 empresas brasileiras aponta que 80% dos membros de conselhos de administração, comitês de auditoria e conselhos fiscais das companhias ainda têm dúvidas sobre a Lei Anticorrupção.
Segundo o levantamento, 36% das empresas ainda não começaram a reformular suas políticas e procedimentos para ficar em conformidade com a nova legislação, e 67% afirmaram já ter pelo menos uma linha de denúncia ou canal de ouvidoria. Outros 9% disseram que esses serviços estão em fase de implementação.
Para Heloisa Estellita, da FGV, para que a lei seja efetiva, contudo, é necessária uma real fiscalização do poder público. “Isso vai depender muito, como sempre, da fiscalização. O melhor remédio para que as pessoas não pratiquem crime é a certeza de que serão punidas.”