No Velho e Novo Mundo, mesmo aqueles que não o conheceram, nem a sua obra e mesmo leram ou ouviram alguma menção a EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA, todos, indistintamente, muito devemos a seu gênio, a seu magistério e à sua fé na perfectibilidade humana e na missão civilizadora do Direito, o reposicionamento do Estado ante a sociedade, como o seu instrumento e não como o seu tutor, o que vale dizer, algum aspecto das liberdades de que hoje desfrutamos nas sociedades abertas e nos Estados Democráticos de Direito.
Nesta segunda-feira, faleceu em Madri, com 90 anos de vida dedicada a esses valores, que tão bem professou, praticou e difundiu – embora, como se expressou um dos seus mais próximos discípulos, Tomás Ramón Fernández, em seu Necrológio, “homens de sua dimensão sobrevivem a si próprios” – deixando-nos, aos que direta ou indiretamente desfrutaram de sua genialidade, a imensa responsabilidade de levar adiante as grandes linhas de seu magistério, que se estendeu por sobre o Atlântico – a que chamava familiarmente de “o grande charco” – a países dos dois Continentes, que manifestaram, por suas mais conspícuas Universidades, essa reverência ímpar em inúmeros prêmios nacionais de expressão e em 17 doutorados honoris causa que lhe foram outorgados.
Sua trajetória pública, que vai desde a conquista de suas duas Cátedras de Direito Administrativo, em Valladolid e em Madri, à sua criativa judicatura no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como seu primeiro juiz espanhol, a que se acresce a idealização e fundação da Revista de Administração Pública em 1950,possivelmente a mais antiga publicação periódica europeia do gênero, que, como é de geral reconhecimento, contribuiu decisivamente para a transição política da Espanha, de um longo período ditatorial franquista à restauração da vida constitucional.
Mesmo com toda a síntese possível, não menos que toda uma página de jornal foi necessária para realçar toda a riqueza de uma longa vida, não apenas quanto à sua herança de jurista e de professor, sem esquecer o legado de seu permanente exemplo, no convívio sempre bem humorado, otimista e incentivador, que dele fez o chef de file da maior Escola de Catedráticos de Direito Administrativo da Espanha, à qual, a generosidade de García de Enterría ainda veio a agregar alguns distinguidos colegas de países europeus e americanos, tornando-a, possivelmente, única no mundo em seu gênero e mais um motivo de orgulho da Universidade Complutense de Madrid, cujos discípulos hão de sustentar tão rara e impressionante tradição.
Perde a Espanha o seu filho e, para inúmeros juristas de todo mundo, o que mais próximo se pode ter na vida intelectual como um pai e, parafraseando um desses filhos do espírito, Tomás Ramón Fernández, “foi um privilégio encontrá-lo, tê-lo como Mestre”, e, de minha parte, por quarenta anos, desfrutar de seu convívio e de sua amizade.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto é Diretor Científico do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE). É Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor das universidades Cânidido Mendes e PUC-Rio.