O novo marco normativo do Direito Concorrencial brasileiro, vigente há dois anos, promoveu o endurecimento do combate aos grandes cartéis feito pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mas deixou evidente a necessidade de difusão da cultura antitruste dentro do Ministério Público. A conclusão foi discutida em seminário organizado pelo Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (Iiede), sobre a Lei 12.529, de maio de 2011, que reorganizou a estrutura administrativa das agências responsáveis por validar as operações de fusão e investigar a formação de cartéis no país.
O evento, intitulado “Devido Processo Regulatório no Cade – A Nova Lei de Defesa da Concorrência em Debate”, reuniu na última sexta-feira (2/8), na sede da Fecomercio, no Rio de Janeiro, membros e ex-membros do Cade, advogados, professores, representantes do Ministério Público e da Justiça Federal, além do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça.
“Há expectativa de intensificação do direito sancionador do Cade, que deve se voltar cada vez mais à atividade repressiva. Mas, para que isso aconteça, os Ministérios Públicos precisam se estruturar melhor nos estados, criando núcleos de inteligência e canais mais velozes e tecnológicos. Faltam, para começar, instrumentos estatísticos para avaliar essas instituições”, resumiu o coordenador acadêmico do encontro, o advogado Fábio Medina Osório, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri e presidente do Iiede.
Segundo ele, o Cade poderia ajudar MPs e Procons nesse treinamento. “O que está faltando é ativar o circuito de informações.”
Estratégia comum
Na avaliação do procurador Sady d´Assumpção Torres Filho, representante do Ministério Público Federal no Cade, há uma “quase unanimidade” quanto à dificuldade das instituições em reprimir condutas anticompetitivas, “tanto no âmbito administrativo, pelo Cade, quanto na persecução criminal, na obtenção da prova e na quantificação e reparação dos danos.”
Essa superação passa, segundo ele, pelo estabelecimento de estratégias comuns entre MPs federais e estaduais. “Não podemos ficar batendo cabeça, como vem acontecendo, disputando atribuições e competências. Isso só beneficia os agentes que praticam o ilícito.”
Para Torres Filho, “a capilarização extrema do Cade não é desejável, nem factível”. Por outro lado, diz, “o MP está despertando para a questão concorrencial e pode, com uma pauta mínima, atuar de maneira coordenada e eficiente”.
Multa
Já o procurador chefe do Cade, Gilvandro Coelho de Araújo, afirma que um dos principais ganhos trazidos pela Lei 12.529 está no controle prévio de concentrações: pelo novo texto, se uma fusão ou aquisição produzir efeitos antes de ser apreciada pelo Cade poderá ser multada em até R$ 60 milhões, sofrer processo administrativo e ser anulada.
Segundo ele, essa mudança propiciou a diminuição de casos e a possibilidade de atuar em outras frentes, como em licitações fraudadas e outras condutas anticompetitivas.
Desde a sanção da nova lei, cerca de 600 casos de atos de concentração, aquisição ou fusão foram julgados pelo Cade. Mas o procurador chefe admite que a autarquia ainda não deparou com um grande caso de concentração. “Esse será o grande desafio do Super Cade”.
Massa crítica
Outro desafio, para ele, está na falta de massa crítica sobre Direito Concorrencial no país. “Muita gente ainda confunde defesa do consumidor com defesa da concorrência, que é algo macro. Um consumidor individualmente lesado não traz, necessariamente, preocupação para o Cade.”
Essa confusão tem criado dificuldades na hora de definir que órgão deve atuar, se o MP, o Procon ou o Cade. Mas Araújo reconhece que essa é uma questão cultural, que ainda precisa amadurecer, como ocorreu com o direito do consumidor. E que aumentar a presença do Direito Concorrencial na grade dos cursos de Direito e economia, por si só, não basta.
Mas se o controle prévio trouxe vantagens, também elevou os custos de transação, lembra a conselheira do órgão, Ana Frazão. A lei prevê que a autarquia tem prazo de 240 dias para analisar esses atos, com possibilidade de prorrogação por 90 dias.
Embora 330 dias não seja um prazo curto, a conselheira salienta que ele foi pensado “para operações complexas que requeiram análise mais pormenorizada”. No entanto, reconhece, um período tão longo seria “desarrazoado” se aplicado a operações mais simples.
Ingerência
Mas há quem veja problemas nos superpoderes que a nova legislação atribui ao principal órgão de combate à formação de cartéis no Brasil — a nova lei viabilizou, também, o aumento do quadro funcional e o investimento em tecnologia.
“Esse Cade ficou tão importante que dá vontade de mandar nele”, provoca o professor da Escola Superior de Magistratura Federal do Rio Grande do Sul Aloísio Zimmer.
“Separar a política da técnica é muito difícil, a política vai querer entrar lá de alguma maneira”, diz, referindo-se a possíveis futuras ingerências do governo federal na escolha dos conselheiros da autarquia. Vinculado ao Ministério da Justiça, o órgão agora tem mandatos de quatro anos.
Para o professor, o Cade não deveria ouvir apenas especialistas. “A população, como têm revelado as manifestações de rua em curso em todo país, quer participar mais das decisões. Ou elas pertencem só ao mundo dos juristas e dos economistas?” E exemplifica: “Se o mercado do leite está caminhando para a concentração, talvez as pessoas queiram ser ouvidas sobre isso”.