Corte de San José não vai rever penas do mensalão

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos não deve ser utilizada como instância de revisão de sentenças penais proferidas pelas Supremas Cortes de outros países. A declaração é do peruano Diego García-Sayán, presidente da Corte, e serve como advertência aos réus condenados no mensalão que manifestaram a intenção de recorrer a San José na tentativa de se livrar das punições impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

 

“Nós não somos uma quarta instância que revisa as penas para reduzi-las ou não”, disse García-Sayán, referindo-se ao sistema judicial da maioria dos países latino-americanos em que o Supremo local é a terceira instância.

 

No Brasil, o STF é a quarta e última instância penal e alguns réus, como o deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP), já buscaram advogados em San José para estudar a possibilidade de entrar com recurso na Corte.

 

Segundo García-Sayán, a função da Corte Interamericana não é a de interferir ou revogar decisões dos Supremos locais, mas sim, a de promover um diálogo com os países para que eles respeitem e cumpram as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José, que foi ratificado pelo Brasil em 1998.

 

Ex-ministro da Justiça, chanceler e parlamentar do Peru, García-Sayán quer seguir o exemplo da construção da estrada dos Andes que ligou o Brasil ao Pacífico, um projeto que ele participou pessoalmente. Agora, ele quer construir uma “estrada de diálogo” entre a Corte e o STF. Essa “nova estrada” chega no momento em que casos importantes vão passar quase simultaneamente por ambos os tribunais, como as contestações ambientais contra a construção da usina de Belo Monte, que podem ser julgadas pela Corte de San José e pelo STF.

 

Na Comissão de Direitos Humanos, em Washington, há um questionamento sobre a falta de audiência prévia com as comunidades indígenas que vão ser afetadas pela usina. Neste ano, a Comissão deve decidir se envia o caso para a Corte julgar. No STF, há um recurso do Ministério Público Federal com a mesma alegação que deve ser levado para a pauta do tribunal pelo presidente, ministro Joaquim Barbosa, ainda neste ano.

 

A Lei da Anistia é outro tema que envolve ambos os tribunais. Em abril de 2010, ao saber que a Corte iria julgar um caso sobre a Lei da Anistia, o STF se antecipou para declarar válido o perdão judicial para pessoas que cometeram crimes durante o regime militar (1964 a 1985). Em outubro daquele ano, a Corte decidiu que a Lei da Anistia não poderia ser utilizada para evitar a apuração de crimes de lesa humanidade cometidos na ditadura. Agora, há um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Supremo para que siga na mesma orientação da Corte e permita a investigação e a posterior responsabilização de mortes e desaparecimentos naquele período.

 

Em meio a essas polêmicas, García-Sayán revelou que gostaria de estabelecer uma relação mais próxima com Joaquim Barbosa e acredita que é positivo para o Brasil ter um juiz entre os sete da Corte – o brasileiro Roberto Caldas, que assumiu em 4 de fevereiro.

 

Presidente da Corte desde 2010, García-Sayán tem esperança de que a Venezuela volte atrás na decisão de se retirar de sua jurisdição. Em julho de 2012, o governo de Hugo Chávez decidiu abandonar a Corte após ser condenado por deixar um preso em má situação carcerária, mas ainda pode rever essa posição.

 

A seguir os principais trechos da entrevista feita em viagem a convite da Fundação Konrad Adenauer Stiftung.

 

Valor: No julgamento do mensalão, 25 pessoas foram condenadas, incluindo políticos importantes que pretendem recorrer à Corte. Em quais condições a Corte revê decisões penais como essa proferida por um Supremo de um país?

Diego García-Sayán: Não posso falar do caso específico, pois não poderia adiantar um eventual voto sobre algo que pode chegar a Corte. Mas o que posso dizer é que a Corte não é um tribunal de quarta instância que revisa as penas para reduzi-las ou não. A Corte pode verificar o cumprimento ou não das garantias processuais e dar, eventualmente, alguma reparação, como, talvez, o direito a um novo processo. Mas a Corte Interamericana não é um tribunal penal que substitui ao nacional. Esse é o único que pode ditar sentenças penais. A Corte Interamericana não é feita para se recorrer como outra instância penal.

 

Valor: Como podemos definir a atuação da Corte?

García-Sayán: É um tribunal que busca que as condutas das autoridades se adequem às obrigações internacionais que os Estados se acertaram como aquelas que se orientam à proteção e garantia dos direitos das pessoas. É dizer aos Estados que se organizem para garantir os direitos humanos que estão escritos na Convenção. Os Estados não cumprem os direitos humanos somente abstendo-se de torturar ou de matar as pessoas. Cumprem tendo um sistema judicial e administrativo que garanta procedimentos adequados, que seja acessível, que dê garantia às pessoas.

 

Valor: Enquanto o Brasil tem foro privilegiado pelo qual autoridades só são julgadas no STF, a Corte defende o duplo grau de jurisdição pelo qual é possível recorrer para outra instância. É possível que a Corte faça uma recomendação para o Brasil por fim ao foro?

García-Sayán: A Corte não emite conceitos em abstrato. Resolve casos concretos ou responde a solicitações de opinião consultiva. E esse tipo de solicitação não teria um caráter vinculante, a decisão não teria um caráter obrigatório. Mas temos que dizer que a pluralidade de instâncias é um elemento importante. O que não quer dizer que isso tenha que ser feito de maneira imediata, ou que casos sem mais de uma instância estariam violando os direitos humanos. A Corte tem que analisar as particularidades de cada caso. Um processo penal é diferente de um processo administrativo ou tributário ou outro que tenha a ver com motivos políticos. São modalidades e ritmos diferentes.

“Sempre que as pessoas são acusadas de corrupção, devem ser respeitadas as garantias de defesa e o processo”

 

Valor: O quanto é importante para a Corte o combate à impunidade e à corrupção?

García-Sayán: Nós temos vários casos sobre isso. Os princípios de direitos humanos são gerais. Sempre que as pessoas são acusadas de corrupção, devem ser respeitadas as garantias adequadas para a sua defesa e para o devido processo. Os delitos de corrupção são repudiáveis, mas a Justiça deve dar as devidas garantias de defesa.

 

Valor: Em quanto tempo um recurso contra uma condenação penal de um Supremo pode chegar à Corte e ser julgado?

García-Sayán: Um caso só chega à Corte depois de submetido e examinado pela comissão, em Washington. Às vezes, demoram anos. Mas a Corte entende que o cumprimento dos prazos deve ser exemplar. Pedimos aos Estados que adiantem os seus trâmites, senão a Corte não pode fazê-lo. Por isso, são feitos muitos esforços para que os casos que antes demoravam entre 20 e 40 meses, sejam decididos em 15 meses, no máximo. Menos não podem durar, pois temos que dar às partes o tempo necessário para a apresentação de provas. Mas o tempo de demora para chegar à Corte depende da comissão.

 

Valor: A manutenção da Lei de Anistia no Brasil é um problema para a Corte?

García-Sayán: Esse é um tema que foi decidido pela Corte e a sentença está sob cumprimento. Há um processo de comunicação com o Estado para ver como está se dando, pois há mil maneiras de dar cumprimento a uma sentença sobre um tema complexo como a Lei de Anistia. Pode ser não aplicando a lei, ou pela sua anulação através do Judiciário ou do Legislativo.

 

Valor: O governo brasileiro está cumprindo a sentença com a criação da Comissão da Verdade? E o Supremo estaria descumprindo ao manter a Lei da Anistia em vigor?

García-Sayán: Eu prefiro não opinar sobre o caso porque a sentença está em trâmite de supervisão pela Corte. A Corte está analisando em que aspectos há luz e em que aspectos há sombras. Como toda a sentença, o que se quer é o cumprimento total. A sentença não se cumpre em seis meses. Ela requer um leque bastante amplo de reparações e articulações. O caso é complexo e não se cumpre em poucos meses.

 

Valor: Quando a Corte vai julgar o caso de Belo Monte?

García-Sayán: Ainda não chegou à Corte. Poderia ter chegado como consulta.

 

Valor: O sr. acha que a transmissão ao vivo dos julgamentos, como ocorre no STF, pode interferir no resultado?

García-Sayán: Até pode interferir, mas devo fazer uma ponderação. Como ser humano, como democrata, eu sempre prefiro a publicidade. Quando assumi a Presidência dessa Corte, tive a preocupação de que a publicidade fosse efetiva não apenas para as pessoas que podem participar fisicamente das audiências da Corte, na Costa Rica. Assegurei a publicidade das audiências pela internet. Pessoalmente, acredito que os meios de comunicação e o jornalismo são muito importantes, pois nos permitem explicar e responder perguntas para que as pessoas formem as suas próprias opiniões sobre o que estamos fazendo.

 

Valor: Os juízes do STF citam muitos autores alemães, italianos, portugueses e decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas falam pouco dos trabalhos da Corte Interamericana. É possível mudar isso?

García-Sayán: Acho que temos que conversar com os juízes e ministros do STF no Brasil. Tenho o maior respeito por Joaquim Barbosa, por sua trajetória, sua qualidade acadêmica e pelo seu compromisso com a democracia e com os direitos humanos. Queria manter um diálogo com ele. Seria muito importante contar o que estamos fazendo e o impacto que isso tem para melhorar os direitos humanos, não porque a Corte esteja impondo algo, mas sim porque dinamiza forças democráticas nacionais. Isso é o que importa.

 

Valor: A Corte pode determinar mudanças nas sentenças de tribunais de outros países?

García-Sayán: A Corte não impõe nada. Ela dinamiza as questões. A Corte é feita por seres humanos e não pretende ficar por cima. Ela cumpre uma função distinta e subsidiária. Quem manda são as cortes nacionais, e não a Corte Interamericana.

 

Valor: Os tribunais dos países estão absorvendo as decisões da Corte Interamericana?

García-Sayán: Nos últimos dez anos, as instituições estão utilizando cada vez mais as decisões da Corte e essa incorporação vem em grande parte das Supremas Cortes nacionais. Não são apenas os juízes locais. É extraordinário o dinamismo com que as instituições nacionais estão digerindo, assimilando e utilizando as decisões da Corte Interamericana.

“A Corte não impõe nada, dinamiza as questões. Quem manda são as cortes nacionais, e não a Corte Interamericana”

 

Valor: Quais países absorveram as decisões da Corte?

García-Sayán: Isso aconteceu em distintos países, como o México, a Colômbia, o Peru e a Argentina. Eles têm elemento em comum: a velocidade com que essas mensagens foram incorporadas. Sempre haverá lugar para se aplicar as decisões da Corte e para que se aplique a Convenção Americana como se fosse a Constituição para todos.

 

Valor: E no caso de Brasil qual é a sua avaliação sobre a incorporação das decisões da Corte?

García-Sayán: Veja, eu acredito que com o Brasil temos uma relação mais tênue. Tivemos um período de audiência, há muitos anos, com o Brasil num espaço basicamente acadêmico. Nos outros países, tivemos audiências em espaços judiciais. No Peru, estivemos no coração da Suprema Corte. No México, fomos ao auditório da Suprema Corte e foi muito positivo quando o presidente do tribunal não apenas defendeu o controle de convencionalidade, mas fez um curso sobre a sua aplicação para todos os juízes federais. Ele disse que os juízes tinham que cumprir não apenas a Constituição daquele país, mas também as decisões da Corte. Disse que essa era a obrigação dos mexicanos com a Constituição porque assim haviam se comprometido e que isso é necessário para que os direitos humanos sejam protegidos.

 

Valor: O caso mexicano é um exemplo para o Brasil?

García-Sayán: Sim, é um exemplo. Temos que entender que há um diálogo com as sentenças da Corte. Não é algo a que se submetem os estados soberanos, algo vindo de um ordenamento alheio. É algo para fortalecer o sistema judicial e democrático na América Latina.

 

Valor: Qual a importância do Brasil para a Corte?

García-Sayán: O Brasil é importante não apenas por sua dimensão e pela qualidade das suas instituições e pelo desenvolvimento político que teve. É um país que deveria estar exercendo um papel mais ativo na construção desse sistema extraordinário para todos os cidadãos das Américas. Não apenas para a Corte. A Corte é apenas um instrumento. Gostaríamos da presença mais dinâmica do Brasil.

 

Valor: Qual a dificuldade de estabelecer um diálogo com o Brasil?

García-Sayán: Lamentavelmente, as sentenças da Corte não estão traduzidas em português. Seria de grande ajuda se elas fossem mais acessíveis ao Brasil. Seria fantástico fazermos uma audiência em território brasileiro para quem possam ver a Corte em ação, como participam as vítimas, como atuam os peritos, como se respeitam os direitos. Eu tive a oportunidade de estabelecer um diálogo com o Brasil para construção da estrada com o Peru. Hoje, a estrada vai de Lima até São Paulo, passando por Cuzco, entrando pelo Acre. Ela é uma realidade. Esse projeto me encanta. Para muitos, era uma ilusão. Falou-se nessa estrada por 200 anos. Hoje, ela é viva. Temos que abrir uma nova estrada de diálogo com o Brasil.

 

Valor: A presença de um juiz brasileiro na Corte pode ajudar nesse diálogo?

García-Sayán: Acredito que é boa a circunstância de o Brasil ter novamente um juiz na Corte. Estou disposto a ir ao Brasil quantas vezes for necessário para conversar com as autoridades do Executivo, do Judiciário e do Legislativo e realizarmos atividades para que esse diálogo se amplie e para que mais pessoas participem e conheçam melhor o que estamos fazendo e o que está acontecendo na América Latina com os países que estão utilizando as sentenças da Corte. Acredito que seria bom se utilizassem as ferramentas que estão à disposição, as sentenças da Corte. Estou disposto a ir para falar, não para negociar. Para contar o que acontece aqui e nos países da América Latina.

 

Valor: O sr. lamenta que a Venezuela possa abandonar a Corte?

García-Sayán: A Venezuela segue sendo parte do sistema. Eu confio que haja a revisão da decisão para a própria sociedade da Venezuela. Não para o sistema ou a Corte, mas para a própria sociedade venezuelana. As dinâmicas de integração entre os países são essenciais. Nenhum país pode viver ao largo dos demais. Todos os latino-americanos estão num sistema seja como membros da OEA ou do Mercosul. Todos assumem compromissos. Os exemplos podem ser diferentes. Mas as diferenças de enfoque político e ideológicas não podem deixar alguns povos figurar como bons ou maus. A sociedade interamericana e a Venezuela estão e devem caminhar na mesma marcha da democracia e dos direitos humanos.

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