Sendo ele homenageado no III Seminário de Infrações e Sanções, Dr. Almiro Couto e Silva foi representado por seu filho, Dr. Jorge Couto e Silva. O evento foi idealizado pelo Instituto Internacional de Direito do Estado – IIEDE em parceria com diversos e importantes apoiadores.
Leia abaixo o texto homanagem, lido para todos os presentes no evento:
“Por razões de saúde não me foi possível comparecer, como gostaria, ao III Seminário de Infrações e Sanções nos Serviços Públicos Regulados, realizado em minha homenagem. Pedi, porém, ao meu filho Jorge, meu colega de escritório, que me representasse no evento e que emprestasse sua presença e sua voz para ler a mensagem de agradecimento pela grande honra que me foi conferida. São estas as palavras que reuni para expressar meus sentimentos de gratidão.
Nas divisões do tempo, comparando o passado, presente e futuro, certamente é o passado que tem maior importância. Santo Agostinho dizia que o futuro não existe e que o presente, quando chega, já é passado. Na maior parte das situações somos, assim, julgados e avaliados pelo que fizemos no curso de nossas vidas. No meu caso, porém, a homenagem que me é prestada neste Seminário penso que deva muito mais ser atribuída à generosidade dos que o conceberam e organizaram do que aos traços que compõem a minha história pessoal. É ela, a homenagem, eu sei, uma decisão do Fábio Medina Osório, apoiada e aplaudida pelo Diogo Figueiredo Moreira Neto, ambos meus amigos queridos e cuja capacidade de discernimento, nesta questão, fica, portanto, muito comprometida pelos impulsos do coração e pelas lentes de aumento que a afeição coloca em seus olhos.
Aproximando-me dos 80 anos, é natural que me volte para o meu passado, que já é longo como as sombras da tarde. Entretanto, o que haveria no meu passado de importante para justificar esta homenagem? Entre tantas cinzas que deixei que brasas ainda brilham?
Grande parte da minha vida eu a dediquei ao direito. Instigado por alguns mestres excelentes que tive na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentre os quais destaco a figura ímpar de Ruy Cirne Lima e por outros que conheci primeiramente nos livros, como Pontes de Miranda, cujo monumental Tratado de Direito Privado começou a ser publicado na década de 50 do século passado, fui levado a procurar conhecer melhor o direito romano e o direito alemão. Assim, com alguns anos de formado, pleiteei e obtive bolsa de estudos de instituição do Governo alemão para estudar na Universidade de Heidelberg, nos anos de 1962 e 1963.
Lá, na famosa Universidade, fui aluno, na disciplina de Direito Romano, de Gerardo Broggini, jovem jurista originário da Suíça italiana, sucessor de Wolfgang Kunkel, um dos maiores romanistas alemães do século XX, e, na disciplina de Direito Administrativo, de Ernst Forsthoff, o grande administrativista germânico, no período do pós-guerra.
Retornando ao Brasil, reassumi o exercício do cargo de procurador do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Estado do Rio Grande do Sul, de que me licenciara para estudar no exterior e exerci desde então a advocacia de Estado, geralmente na função de consultoria, até minha aposentadoria como Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.
Fui, assim, a convite de Paulo Brossard, quando titular da Secretaria do Interior e Justiça, Consultor Jurídico daquela Secretaria. Posteriormente, por indicação de João Leitão de Abreu, fui nomeado, em substituição, membro do Conselho de Serviço Público, órgão concebido à imagem e semelhança do prestigioso Conseil d´Etat francês, com a atribuição específica de colaborar na elaboração dos atos normativos do Poder Executivo gaúcho e, também, de realizar o controle de legalidade dos atos administrativos daquele Poder. Os pareceres em que aqueles atos eram examinados vinham sempre publicados no Diário Oficial do Estado.
É óbvio, porém, que esse órgão nunca teve – e nem poderia ter – a competência jurisdicional do símile francês.
Concomitantemente, passei a exercer o magistério jurídico. Pouco depois de haver regressado da Alemanha, após um breve período em que lecionei Direito Romano na Faculdade de Direito de Caxias do Sul, fui convidado pelo Desembargador Balthazar da Gama Barbosa para lecionar Direito Romano na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica, de que era diretor.
Não demorou muito a que o Professor Elpídio Paes, catedrático de Direito Romano na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por sua vez também me convidasse a ser seu Assistente naquela cadeira. O Professor Elpídio não era apenas um notável latinista, profundo conhecedor da língua e da literatura latina, matérias por ele também lecionadas na Faculdade de Filosofia da UFRGS, como igualmente tinha invulgar domínio da história e das instituições de direito romano.
Passei, após, a lecionar Direito Administrativo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em razão de aprovação em concurso público em que obtive o primeiro lugar. Na mesma instituição de ensino superior fui Diretor da Faculdade e, após, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS. Mesmo aposentado, continuei a participar do Programa de Pós-graduação, por mais de uma década, como colaborador voluntário, presidindo seminários e orientando dissertações e teses, de mestrado ou de doutorado, bem como integrando bancas de mestrado e de doutorado.
No tocante à minha produção jurídica, devo dizer, desde logo, que nunca escrevi um livro, lembrando certos compositores que nunca compuseram uma sinfonia, ou uma ópera, preferindo ficar no território mais restrito da música de câmara, ou de escritores que nunca escreveram um romance, só escrevendo contos e crônicas.
Pois eu limitei-me a escrever ensaios, artigos e pareceres, alguns deles sobre matérias de direito privado, ou de história do direito, mas a grande maioria versando temas de Direito Público, especialmente de Direito Administrativo.
Alguns desses trabalhos tiveram certa notoriedade, ganhando destaque em obras doutrinárias e, mais tarde, na jurisprudência dos Tribunais, especialmente na do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Refiro-me, particularmente, aos meus ensaios sobre o princípio da segurança jurídica, na vertente da proteção da confiança, em contraste com o princípio da legalidade, que foram trabalhos pioneiros no Brasil, como é geralmente reconhecido, mas cujo mérito principal foi o de haver trazido, para o cenário jurídico nacional, ideias e princípios já revelados em outros países, como a França e a Alemanha, e que servem como limites ao poder-dever que tem a Administração Pública de invalidar seus atos administrativos ilegais. Tratava-se, na verdade, de quebrar velhos paradigmas, consagrados, inclusive, nas Súmulas 346 e 473 do STF, amparadas em forte tradição civilista, que remonta ao direito romano.
A esses trabalhos devo a indicação do meu nome para integrar Comissão de juristas, presidida pelo saudoso Professor Caio Tácito, incumbida de elaborar anteprojeto de lei sobre processo administrativo, no âmbito da Administração Pública da União, de que foi relatora a eminente Professora Odete Medauar.
O anteprojeto converteu-se, sem alterações, em projeto de lei que, também sem alterações, foi aprovado pelo Congresso Nacional, dando nascimento à Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
O art. 54 dessa Lei, que foi por mim redigido, como atesta a Professora Odete Medauar, em trabalho incluído em obra coletiva de doutrina (Fundamentos do Estado de Direito, coordenada pelo Prof. Humberto Ávila, Malheiros, 2005, p.116) instituiu o prazo decadencial de cinco anos para o exercício do direito da Administração Pública invalidar seus atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, contados da data em que foram praticados, quando eivados de ilegalidade ou inconstitucionalidade, salvo comprovada má fé.
Ainda no concernente à boa fé no Direito Administrativo e à proteção da confiança, na área do Direito Econômico e da responsabilidade extracontratual do Estado relacionada com o planejamento econômico, escrevi dois artigos que também considero pioneiros no direito brasileiro, publicados, respectivamente, na RDP, 63 (jul.- set. 1982) e na RDA 170 (out.- dez. 1987) e, finalmente, levando o exame da proteção da confiança aos contratos administrativos e à responsabilidade pré-negocial e à culpa in contrahendo, tratei desses assuntos, creio que também de forma pioneira, em ensaio publicado na RDA, nº 217.
Não vou realizar, nestas páginas, o inventário de toda a minha obra. Bastará o que indiquei e o que foi acolhido, com extensa citação, em três leading cases do STF, todos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes: a MC 2.900/RS; o MS 24268/MG e o MS 22357/DF.
Essas decisões da Corte Suprema deram início a extenso rol de acórdãos, todos orientados no sentido da estabilização de situações jurídicas geradas por atos administrativos ilegais ou inconstitucionais, cuja imutabilidade derivava diretamente do princípio constitucional da proteção da confiança ou da regra jurídica do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União.
Em meio a muitas cinzas que deixei para trás são estas as poucas brasas que eu recolhi e que aqui cuidei de assoprar para reavivar-lhes o brilho, um brilho talvez pálido e talvez também quem sabe efêmero, mas que assim mesmo pareceu suficiente, no juízo generoso dos meus amigos, para justificar a homenagem que me prestam neste instante e que eu, muito comovidamente, agradeço.”