Novo Código Penal e o mercado de capitais
Por Julya S. M. Wellisch
A comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do novo Código Penal apresentou, recentemente, o seu relatório final. Após o árduo e ambicioso trabalho, avanços foram incorporados ao texto. Contudo, é importante refletir acerca de algumas das alterações propostas em relação aos crimes contra o mercado de capitais.
Em primeiro lugar, foi descriminalizado o ilícito de manipulação do mercado. Embora o tipo previsto no artigo 27-C da Lei nº 6.385/76 merecesse um aprimoramento redacional, parece-nos que a sua desconsideração criminal está na contramão do esforço mundial que vem sendo feito para tornar os mercados financeiros mais sólidos, transparentes e confiáveis.
No fim de 2011, a Comissão Europeia (CE) adotou uma proposta de atualização da Diretiva sobre Abuso de Mercado, justamente para reforçar o quadro existente e assegurar maior integridade ao mercado e proteção aos investidores e, assim, punir de maneira eficaz aqueles que atentem, em última análise, contra a própria economia europeia.
Foram descriminalizados o ilícito de manipulação do mercado e o uso de informação privilegiada
Nessa linha, a CE propõe garantir a aplicação de uma política comum no âmbito da União Europeia mediante o recurso a sanções penais para repressão ao uso indevido de informação privilegiada e à manipulação de mercado. A proposta de diretiva prevê que os Estados-membros tomem as medidas necessárias para assegurar que essas infrações sejam objeto de sanções penais. Nos EUA e no Canadá a manipulação de mercado também é criminalizada. Na Argentina, recentemente, o Código Penal foi alterado para passar a prever novas e mais severas penas ao crime de manipulação de mercado.
Ou seja, enquanto boa parte do mundo caminha para endurecer ainda mais o combate à manipulação de mercado, o Brasil estará dando um passo atrás no regime de repressão dos ilícitos praticados contra o mercado de capitais.
E o mesmo se pode dizer em relação ao crime de uso indevido de informação privilegiada (insider trading). Como se sabe, a Lei nº 10.303/01 criminalizou a conduta daquele que utiliza “informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”.
O dispositivo legal se adapta, apropriadamente, à finalidade da prevenção e da repressão ao uso indevido de informação privilegiada, que não prejudica apenas a contraparte do insider – ou seja, aquele que comprou ou vendeu o valor mobiliário para o detentor da informação relevante ainda não divulgada – mas também, e principalmente, os demais titulares de valores mobiliários de emissão da mesma companhia, os investidores em geral, o mercado de bolsa ou balcão em que foram realizadas as operações, os agentes de mercado e, por que não dizer, o mercado de capitais como um todo, cujo desenvolvimento equilibrado para o atendimento do interesse da coletividade fundamenta a criação e a existência do próprio Sistema Financeiro Nacional, atendendo, em última análise, aos princípios da ordem econômica, conforme previstos no artigo 170 da Constituição Federal de 1988.
A metáfora reproduzida por Paulo Fernando C. S. de Toledo é precisa e ajuda na visualização dos efeitos produzidos pelo insider trading: a imagem da pedra atirada n’água, com os círculos concêntricos formados a partir do ponto de impacto inicial.
Ou seja, o comportamento traiçoeiro dos insiders não ofende apenas os direitos dos demais investidores, mas também prejudica o próprio mercado, abatendo a confiança e a lisura das suas relações, aspectos que fundamentam a sua existência e constituem a base para o seu desenvolvimento.
Vale insistir: por meio da repressão ao insider trading objetiva-se tutelar a função pública da informação enquanto justo critério de distribuição do risco do negócio no mercado de capitais. Consoante destaca a doutrina, o que está em causa é a igualdade perante um bem econômico: a informação necessária para a tomada de decisões econômicas racionais. Quem usa informação privilegiada subverte as condições de regular funcionamento do mercado e coloca em perigo a sua eficiência.
Por tudo isso, a configuração do tipo penal em vigor não exige a efetiva obtenção do resultado material efetivo (crime formal). Justamente porque a finalidade da proibição é assegurar um mercado transparente, simetricamente informado e confiável, é irrelevante para a caracterização do crime que a vantagem almejada pelo insider não seja obtida em razão, por exemplo, de condições de mercado desfavoráveis.
O anteprojeto, contudo, retrocede mais uma vez quando transforma o insider trading em ilícito de cunho material (e não formal), ignorando, assim, as razões que fundamentam a própria existência do crime.
A simples negociação de valores mobiliários com base em informações privilegiadas é capaz de transgredir os mais caros valores fundamentais à própria existência do mercado de capitais. Como já se disse, o sistema de mercado só funciona se houver confiança nas regras do jogo e na conduta dos jogadores.
Além disso, também foi excluída a pena de multa, consequência que nos parece essencial para efetiva repressão de crimes financeiros; e criminalizada conduta que, data venia, não mereceria tratamento penal.
Ao incluir no tipo a conduta daquele que deixa “de repassar informação nos termos fixados pela autoridade competente” criminalizou-se, por exemplo, a conduta omissiva do Diretório de Relações com os Investidores (DRI) que, na forma da Instrução CVM 358/02, não divulgar tempestivamente Fato Relevante. Tal conduta não parece suscetível de tratamento penal, bastando, para a sua adequada repressão, a atuação da CVM.
Em remate, deve agora o Parlamento refletir sobre a proposição apresentada para impedir que, no caso dos crimes contra o mercado de capitais, o novo Código Penal brasileiro represente um retrocesso na preservação da integridade do mercado de valores mobiliários.
Julya Sotto Mayor Wellisch é subprocuradora-chefe da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A opinião aqui refletida não vincula a Advocacia-Geral da União ou a CVM.